1.4.08



COLETIVO

A rua rio árido de pó e asfalto
curva-se
entre casas avenidas praças
mortas.
Os homens calados amalgamados
espiam
de dentro da metálica estrutura
rangente
as flores as mulheres as crianças
movediças.
Uma tarde liquefeita inquieta
escorre
pelas vidraças solares
oscilantes
e o sangue o sonho transportados
vibram
trêmulos cidade vítrea adentro mar
mundo
céu horizonte & juventude perdida
adiante.

O POEMA
.
Não, não, não.
O poema não é um recitar de coisas belas
Assim o fosse e eu só diria rosas
opalas barcos a vela
amantes ao alvorecer tigres e luas
.
Tampouco é o pânico na voz comprida,
a fala torcida de desprazer, o lábio em fúria
ante hórridos, grotescos, daninhos acontecimentos.
O poema não é o homem nem a mulher
nomeando o que não tem nome
desabafando o que o tempo abafa
Muito menos o verbo possível de um deus impassível
Nem a música nem o sonho
Em que um cantor exausto se esquece e apaga
.
Não é uma terra de metáforas verdejantes
nem uma escrita de fogo plasmada do real.
Não sei dizer ainda o que ele é
pois está sempre mudando de rosto corpo alma e sexo
Apenas o pressinto: eis que se aproxima lentamente
e reconheço sua voz recolho o seu grito
penso suas chagas
.
As palavras que me traz são como pedras brancas
duras demais e a seu modo incomunicáveis
tudo que faço é tentar removê-las
o que não requer encanto ou dom divino
apenas braços desejo e paciência
para abrir uma clareira no silêncio
como uma pequena constelação contra o nada,
e esse breve intervalo na confusão no vazio no ódio
é o poema.

BRASÍLIA

Alguém sempre funda uma cidade do seu asco
ou de sua infelicidade, cercada de riscos,
erguida entre gestos de desafio a pedras tumulares.
O visitante não encontra palavras no concreto.
Puxa a mala repleta de livros,
cercado de prédios, tédios, catedrais de vidro
e se indaga como pode alguém ter sonhado tantos
presídios e depois povoá-los.
A cidade é um deserto e só carros
cabem no mapa que desenha um pássaro.
A vida se oculta periférica
Os habitantes dizem que são eles e não o poder
A razão daquela arquitetura imposta
Entre sendas de barro, ardor e frio.
Guardo de cada lugar não a memória
dos tijolos ou esgotos, mas impressões desencontradas
de um olhar viajante apressado
além daquele distanciamento
que me acompanha a cada paisagem pisada
seja ela a capital lunar ou uma terra devastada,
aqui como lá mal me lembro
de ser ou estar.

RETIRO

Por longo tempo estive doente de silêncios,
recoberto de cinzas, tácito como a madrugada,
melancólico como os mochos.
Aspirava à decantação de um espírito
devastador como nuvens de gafanhotos.
Não queria mais ver, não queria mais sentir
Qual era o meu lugar – o meu nicho e ninho – e me rendia
À desolação do deserto, ao desconsolo do tempo
E me fiz monótono, à imagem e semelhança do meu desespero.

Enterrei o desejo sob camadas de neutra indiferença
E já não era nada, menos que nada: palavras amargas
Repertório de farpas, sílabas envenenadas.
Por longos anos estive morto, pior que morto,
Seco e oco como um espantalho
E ignorei passos, gestos e vozes.
Desperdicei as horas o olhar: as palavras
Devoraram-se lentamente.
Era já um caso perdido, uma casa abandonada sob a hera.

Mas foi no centro neutro de um vazio tão completo
Que descobri o veio puro de que o ser era feito.
O tesouro aéreo as moedas solares o rosto luminoso
E amado da matéria vibrante. Reencontrei o fogo
A clareza esplendorosa de um regato ou de um rosto,
O rumor das cidades, o soluço ensimesmado das árvores
E o transparente silêncio das estrelas.
Fitei o meu segredo já aberto num sorriso distribuído
às sombras aos abismos aos abutres e corvos em fuga
E eu disse.

CADERNO

A voz foi e não foi liberta
Posto que adormece agora
entre as cordas flutuantes desta página de silêncio
Onde deixei desenhados os signos que não me traduzem
Apenas transplantam o mistério de uma face imperscrutável
e um coração arenoso a uma superfície porosa e perecível
Tanto quanto a carne o lábio o olhar o sexo e o desejo
Aqui reunidos neste feixe de inconstâncias
Que é quem eu sou. Deitada a mão pelo papel
Repleto de finas incrustações e lisas e azuis
letras lançadas trêmulas inebriantes erradias
Riscando cometas na alva cadência estendida
Como um deserto aberto sobre a mesa translúcida
E longilínea, aérea, erguida, a palavra
salta no universo enleada pelo olhar
sustentada pelo hálito
De fogo e vento que nos tempera
Distribui-se à órbita dos ouvintes
Alcançando longes e amanhãs, além das espirais
Que atam folhas pálidas à miséria do esquecimento.
As palavras alçadas
Assim à cor do dia vestem sentidos e se desnudam
Entregues em frases e versos intermitentes
na lembrança e na brevidade, esboçado o gesto de ser,
gravado no gelo breve de uma vida,
sob o nítido rumor de um pensamento infinito.