31.7.06



RENÚNCIA

Palavras encantadas nunca existiram.
Estão todas perdidas tão logo achadas.
A urgência da chama destrói os cristais
e a pura e única certeza é o silêncio
que se transfigura pela alquimia dos ecos
em rumores sutis, em ruídos e bulício
em falas trazidas da rua
pelos lábios confusos e remordidos.
Talvez a poesia seja a pintura do indizível.
E só quieta e abandonada, diga a que veio.

A TRISTEZA DO REI

...................>>>>>>>>>a João de Paula Aragão

Entrem urgente os músicos e os dançarinos.
...Soem as marimbas, toquem os sinos
Sirvam o vinho e o azeite à mesa do holocausto.
...Queimem o incenso em grande fausto.
Saltem alto, cantem, tentem ilusionismos
...Torçam-se em mil contorcionismos.
Encenem, bufos, as alegres mascaradas
...Montem farsas arranquem gargalhadas
Convidem as cortesãs mais doces e bonitas
...Nada de queixas, nada de desditas
Esqueçam por hoje intrigas e malícias
...Façam do salão um jardim de delícias
Brindemos, sonhemos, todos borrachos.
...Pois aí vem o Rei, ele vem cabisbaixo......

30.7.06


GÓRGONE


De rosto vil
e olhos
Arregalados
Caiu
degolada
Como
uma galinha
Entre as pedras

do jardim.


PONTE


Sobre o mangue
A lâmina flutua
E brilha iluminada
Como uma navalha
Cortando a baía
Em duas.


Comprida e concreta
Estira-se magra
Sobre as águas negras
Une duas margens
de lodo e miséria.

Uma (n)ave
Choca palafitas
Choças toscas
sob as patas
.

Rua flutuante
De aço, engenho
E sonho

Que transponho
Vida adentro.

27.7.06


MIDAS

Tudo o que toco transforma-se em elegia.
...As odes, os estrambotes, os acordes, as alegrias
destroem-se a um simples toque, na carícia
...que a mão não sofre, na delícia que a alma
não sente. Os frutos perdem a cor, o sabor
...e quebram-se os dentes, e o vinho seca-se
em pó nos lábios. É falso o esplendor
...das palmas decadentes e do ouro semeado
a ninguém. Nem os deuses nem as gentes
...querem visitar estes pilares amarelados
erigidos por mãos culpadas e doentias.
...Sou um rei fadado à fome e à tirania.
O povo me teme a lepra e desvia-se.
...Tudo que me toca transformo em poesia.

EVOCAÇÃO

.................a Nauro Machado

Dize
que palavra redime
o homem, qual o define
verdadeiro em seu rastro
que se apaga no pó
revela-me o dom
que abre sendas
mostra-me, muito
além do deserto
as fontes.

Traze
o som e o ardor
o penhor e a senha
franqueia-me o delírio
em que leste os signos
decifra-me os códigos
e os cegos desígnios
antes que o vazio
cubra de silêncio

o vazio.

MINICONTOS

I

Ele nunca falava sobre si mesmo. Nada. Nem uma palavra. Eu pedia, implorava: Fala, fala alguma coisa. E ele em silêncio brutal. Um dia, bebendo, a inesperada confissão: a mãe prostituta, o pai assassino de aluguel. E eu ali, calada, sem saber o que dizer.

II

Um dia o sonho com Cristo. O homem mais lindo do mundo. Atirada aos pés dele, chora, chora. Ele lhe acaricia os cabelos e diz: Vai. E não peques mais. Nunca se sentiu tão pura, tão imaculada.
- E daí?
- Daí eu aqui, toda mergulhada em pecado novamente...!

III

Dois pivetes. Um que pede:
- Tio, um trocado?
- Não tenho não.
O outro nem conversa:
- É chegar e meter o bicho.

INCENSANDO A CRÍTICA


Saiu o terceiro volume da série As Obras Primas Que Poucos Leram, da Record, que compila, sob a organização da jornalista Heloiza Seixas, vários textos críticos publicados na extinta revista Manchete. Este volume da coleção reúne ensaios sobre poesia e teatro de Otto Maria Carpeaux e Paulo Mendes Campos, entre outros, que analisam "Os Lusíadas", de Camões, "Fausto", de Goethe, "A Divina Comédia,", de Dante, "Paraíso Perdido", de Milton, "A Terra Desolada", de T. S. Eliot, "Uma Estação No Inferno", de Rimbauld, "As Flores do Mal", de Baudelaire, "Folhas de Relva", de Whitman, e vários poemas e peças fundamentais. A coleção inteira (Os dois primeiros volumes tratavam sobre grandes romances) merece um lugar na estante. Só os ensaios de Carpeaux sobre Shakespeare e de Paulo Mendes Campos sobre a "Poesia-Coisa", de Rilke já valem pela maravilhosa iniciativa de lançar estes livros. Particularmente sempre considerei o melhor da poesia de Rilke esses poemas objetivos, (que já foram traduzidos brilhantemente pelos irmãos Campos) a despeito da aura metafísica do poeta nas Elegias de Duíno e nos Sonetos a Orfeu. O único senão são os ensaios chatíssimos, acadêmicos, de Josué Montello. De resto, um livro indispensável.

24.7.06

RELENDO BORGES


Os escritores contemporâneos são todos tardios. Chegaram atrasados: perderam a última festa, que foi o Modernismo, um verdadeiro e grandioso banquete, como registra o eminente Roger Shattuck. O Humanismo há muito descansa em paz, enterrado como aquela senhora da peça de Beckett, que ia sendo gradativamente tragada pela areia. Esse sentimento de chegar tarde sempre acompanhou Borges, cujas obras tentavam compensar o seu atraso literário despejando no leitor um oceano de erudição. Borges vivia para os livros e para a mãe, com quem morou até a morte dela e só esboçou vida amorosa na velhice, com sua secretária Maria Kodama, mocra tal que só um cego mesmo. Em suas últimas entrevistas, Borges deu vazão ao mais puro ressentimento. Ser tardio o tornava uma figura deslocada no tempo e no espaço, uma fantasmagoria quase tão imponente e improvável quanto o falecido pai de Hamlet assombrando o reino da Dinamarca. Argentino, queria ser e foi enterrado na Suíça, país curioso, que, na sua frase famosa, foi o único a optar pela Racionalismo. Hoje sabemos que os bancos suíços embolsaram dinheiro nazista, pilhado de judeus mortos na Segunda Guerra. E o tal Racionalismo acabou posto em cheque pelas teorias do inconsciente de Freud, o velho pai da psicanálise, que por sinal Borges desprezava.

Borges foi o anti-Proust por excelência. Jamais escreveu um romance e tinha horror a tramas “psicológicas”, informes a seu ver. Emulava Kafka e admirava Mallarmé, e como ambos, parece que preferia literatura a tudo, sexo inclusive. Foi contemporâneo de Neruda, que na época ocupava o cargo (político) de maior poeta latino-americano da terra. Borges, que era um bom poeta, jamais alcançou a notoriedade de Neruda nesse terreno, apesar de se opor a Perón (que odiava), ele acabou famoso pelos contos em estilo de ensaísta e pelos ensaios, verdadeiros contos. Num de seus melhores, O Aleph, Borges reserva gozações impagáveis a Neruda e faz pouco da obra máxima do rival, o longo Canto General. Contudo, a despeito do pouco-caso de Borges, Neruda legou muitas influências. Elisabeth Bishop, a poetisa norte-americana, confessou que detestava Neruda, mas se dizia contagiada pelo surrealismo de seus poemas.

O grande crítico Harold Bloom diz que seu conto favorito de Borges é o policialesco “A Morte e a Bússola”. Mas o que eu mais admiro chama-se “As Ruínas Circulares”. Um primor narrativo, estético e metalinguístico. Sempre que o releio, sinto o mesmo impacto da primeira vez e acabo gratificado pelos intensos prazeres que proporciona.

23.7.06


AMIGOS OCULTOS


Tenho amigos que se ocultam
na sombra na poeira no sul no norte
no olvido na solidão no mar
ou sob uma máscara
de sal e silêncio.

Suas vozes desertam os nomes fogem
no entanto rostos às vezes volvem
como um segredo antigo uma lua nova
Nos dias noturnos em que os revejo
reabertos os sorrisos cheios de silêncio
e mal reconheço as palavras apressadas
que me saúdam ou indagam as novidades.
Sei que suas vidas correm e se derramam
fugidias como arcos de cristal
ao acaso da tempestade ou se revelam
Intrincadas como os veios de sangue do tempo.

Revejo os amigos ocultos num gesto numa foto
Numa cadeira num copo na palavra franqueada
Que tenta conversar comigo e reabilitar o riso.
Temos o pacto de um abraço
intacto ainda que milhões de paredes
nos separem e cubra-nos o tédio oficial
de viver entre prédios cinzentos
em destinos alheios a todas as alianças sutis
como as dos grãos de areia com as gotas d’água.

Os amigos ocultos caminham na transparência
da pura ausência. Mas sei que os tive
por um instante por um segundo
antes que se dissolvessem no ar
enquanto cavavam seus lugares no mundo.

20.7.06


GARRAFA


Guardo no sigilo do sangue
Uma senha de sonho e espuma

Trago comigo uma tempestade
No fundo da calmaria escura

Acumulo segredos pouco nítidos
Sob a transparência do vidro

As mãos que violam meu silêncio
Vertem um canto entorpecido

Distribuo as palavras livres
Derramo as verdades vedadas

Proponho o delírio num brinde

E abafo o rumor das mágoas.

LIMIAR

Alcançaste a árida terra das sombras
E me comunicas a noite pontualmente
Junto aos grilos sob a fronteira de estrelas.

Eu te procuro na terra como quem cava
Em busca do fogo das palavras
E faz jorrar um puro lamento.

Tua voz foi lavada pelas chuvas
Teu sorriso jaz coberto de musgo

Tu és um cristal entre as pedras:
A essência mineral do silêncio.