4.11.08

Mais Portugais

Sigo lendo e relendo Casimiro de Brito, grande poeta português, que também é romancista, ensaísta e contista. A antologia poética dele faz parte da Coleção Ponte Velha, da editora Escrituras, e é mais um dos meus (muitos) livros de cabeceira. Na verdade faço dos livros de poesia (especialmente de poetas portugueses) meus travesseiros. Na poesia lusa que me chega não percebo alguns vícios de certos vezos brasileiros. Prefiro o lírico cotidiano dos melhores poetas portugueses contemporâneos às esquisitices ou ironias pós-moderninhas de vários poetas-pop, essa nova praga virtual.

Um outro escritor português cujos dons literários me impressionam é o romancista M. Gonçalo Tavares. Li Jerusalém e fiquei muito impressionado. Tem um livro novo dele na praça, bem como o anterior, que eu perdi. Vou ver se ainda consigo encontrá-los e depois comento aqui.

Por hoje, fiquem com um poema do Casimiro de Brito:

AMOR SOLAR

Cansado dos homens afasto as nuvens
Em busca de uma paz de árvore onde eu possa
Beber em paz e em paz
Construir o meu ninho. Ali
No tronco mais silencioso da grande casa
Não sou cidadão de país nenhum
Pai de nenhuma família
Sou apenas o cão mais humilde
Do mundo que há para além do mundo
Onde se medem ao milímetro
O bem e o mal. Nesse pátio
Já não estou afastei-me
Quando perdi o sentido do peso
E das medidas - quando alguém me disse
E eu vi
Que numa gota de vinho há dez mil anos
De amor solar.

27.10.08


CONTOS DE CORTÁZAR
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Minha leitura do momento? Todos Os Fogos O Fogo, de Julio Cortázar, pela editora Globo. Para falar sobre Cortázar, bem, nem sei por onde começar. Foi um contista fabuloso, era argentino (viveu radicado na França) - e assim como Borges, é fortemente influenciado por Kafka. Encontrei o livro na Nobel. E me custou apenas 28 dinheiros.
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Deste Todos Os Fogos O Fogo, os contos que me parecem mais assombrosos são "Senhorita Cora" e o conto homônimo ao título do livro, sobretudo este último que narra duas histórias paralelas, aparentemente sem nenhuma ligação entre si, mas que no final se revelam simétricas perante a destruição dos personagens num incêndio. Esta atual tradução me parece bem melhor do que uma anterior que eu possuía, comprada em banca. E que, para piorar tudo, vinha num exemplar em amarelecido papel-jornal, do tipo mais vagabundo e perecível possível.
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O primeiro conto do livro (sobre um engarrafamento monstruoso no interior da França) é primoroso e fica entre o realismo irônico e o fantástico. Não deixo de pensar nele quando confronto o absurdo tráfego de nossas ruas, mais e mais engarrafadas a cada dia... Já 'Senhorita Cora' é tocante. Nos melhores contos de Cortázar há sempre um conflituoso contato entre pessoas que mal se conhecem, mas esse breve conhecimento um do outro tem um peso insuportável, porque tais pessoas acabam se deparando com a mortalidade humana. Cortázar é um dos escritores que mais sutilmente observa os mecanismos de negação da morte utilizados pelas pessoas.

14.10.08

COMPRAS NA FEIRA


Fui à II Feira do Livro de S. Luís e estava achando tudo muito ruim (só encontrava best-sellers ilegíveis). De repente me deparei com o stand da editora do Senado. E qual não foi a minha surpresa de ver editada, em quatro grossos volumes, a monumental História da Literatura Ocidental, do Otto Maria Carpeaux.


Não pensei duas vezes. Os quatro volumes pesavam como chumbo, mas levei os preciosos tijolões para casa.
O austríaco Carpeaux foi o único crítico que deixou uma obra com semelhante fôlego, capaz de analisar com profundidade, contextualizando historicamente, comentando às vezes com ironias afiadas, vida e obra de 8.000 dentre os mais relevantes autores ocidentais.
Perto dessa abrangência sem par, mesmo os esforços do eminente Harold Bloom em "O Cânone Ocidental" e "Gênio" saem bastante amesquinhados. Não fosse Bloom um sutil observador das sutilezas que os outros críticos mal percebem nos grandes escritores, creio que sua intrincada e esotérica teoria da "angústia da influência" acabaria mofando como uma peça acadêmica hermética. Bloom, o mais importante crítico literário da atualidade, é um discípulo de Benedetto Croce, e como o italiano, põe a estética acima de tudo. Carpeaux era mais politizado, mas não no sentido vulgar tipo o sujeito que apenas emite jargões à esquerda ou à direita. Carpeaux faz um apanhado das idéias que estão em voga em cada período histórico, mas não perde de vista o valor estético de cada um dos autores analisados individualmente, é um crítico histórico, mas sobretudo um imenso humanista.
O livro de Carpeaux é caso único. É incrível que ele tenha vivido no Brasil, entre nós, os bárbaros. Se bem que, em face dos horrores da Segunda Guerra, o primitivismo dos brasileiros parece até um refresco pré-civilizatório diante da dissolvição do mundo ocidental orquestrado pelos nazistas, ao som de Wagner. Quando Carpeaux veio para o Brasil, deixou não só a Europa, mas as próprias portas do inferno para trás.

A erudição de Carpeaux é de cair o queixo. Livro de consulta permanente. Livro de cabeceira.

A edição destas obras talvez seja a melhor notícia que veio do Senado Federal desde que este país existe!

9.10.08


Hoje começa a II Feira do Livro de São Luís. Devo aparecer por lá à tarde. Espero que seja melhor que a feira do ano passado, com poucos stands de fora, poucos eventos paralelos e pouquíssimas promoções quanto ao preço dos livros.

A iniciativa da Feira é uma boa porque em S. Luís, a suposta cidade "dos poetas", já não tem mais livrarias, nada além da Nobel, da Atenas, da Literarte e dos sebos.

Eu me viro comprando livros pela Internet. Mas ainda assim, adoro freqüentar boas livrarias. Nem que seja só para folhear livros que nunca comprarei.

Dos escritores convidados para esta edição da feira o único que realmente admiro e, portanto, conta, é o João Silvério Trevisan. Eu adoraria que ele autografasse o seu livro, caso eu não o tivesse emprestado (ou seja, em nosso país, levando em conta nossos costumes, isso quer dizer dado para os outros, perdido). De qualquer forma pretendo comprar na feira outros livros dele, além dos que emprestei (perdi). Espero encontrá-los. Aí peço para o Trevisan assinar.

Ele namorou o Lúcio Cardoso, coisa que a Clarice Lispector teve muita vontade, mas não conseguiu, por causa da "impossibilidade", escreveu a esfinge. Audácia do Trevisan.

8.10.08

UM CRÍTICO

Bom crítico de cinema é o americano Roger Ebert, que escreve há anos para o Chicago Sun Times. No dizer de Paulo Francis: "o grande crítico nos guia, não fica só no esculacho". Vale mais a pena por suas simpatias do que pelas inevitáveis torcidas de nariz.

Nesse sentido, Ebert é um campeão da crítica. Quando gosta de um filme ele sabe pôr devidamente os pingos nos is sobre o mesmo. Seus argumentos nos esclarecem não só sobre o filme em si, mas também a respeito do verdadeiro papel da crítica: evidenciar o que há de essencial por sob as superfícies. Não é uma tarefa óbvia e requer uma cultura que não vem exclusiva da TV ou da Internet.



Ebert escreve maravilhosamente bem. O que mais me espanta ao ler críticas de cinema na Internet é a homogeneidade da coisa. Contam a sinopse. E acrescentam aquela história de "gostei" ou "não gostei", com arrogância e tal. Falta análise.

O site do Ebert é um guia de atualização de filmes, tanto de lançamentos quanto daqueles grandes filmes que não têm a validade vencida.



Há dois maravilhosos livros de Ebert lançados no Brasil pela Ediouro: "A Magia do Cinema" e "Grandes Filmes". Ambos esgotados, se não me engano. Recomendo-os para quem ama cinema. E recomendo-os, sobretudo, àqueles que precisam aprender a escrever sobre cinema.

20.5.08



INSPIRAÇÃO

Dizem que o lirismo é um relâmpago
Subcutâneo a desencadear um transe
Que engrola a língua. Quando a linguagem
Do indivíduo em curto-circuito
soa todos os alarmas.

Mas as leis da inspiração não têm
A mesma validade para os loucos lúcidos.
Nenhum incêndio acende-se nas palavras
por combustão natural. Tudo e nada
equivalem a carvões ou diamantes nas mãos.

1.4.08



COLETIVO

A rua rio árido de pó e asfalto
curva-se
entre casas avenidas praças
mortas.
Os homens calados amalgamados
espiam
de dentro da metálica estrutura
rangente
as flores as mulheres as crianças
movediças.
Uma tarde liquefeita inquieta
escorre
pelas vidraças solares
oscilantes
e o sangue o sonho transportados
vibram
trêmulos cidade vítrea adentro mar
mundo
céu horizonte & juventude perdida
adiante.

O POEMA
.
Não, não, não.
O poema não é um recitar de coisas belas
Assim o fosse e eu só diria rosas
opalas barcos a vela
amantes ao alvorecer tigres e luas
.
Tampouco é o pânico na voz comprida,
a fala torcida de desprazer, o lábio em fúria
ante hórridos, grotescos, daninhos acontecimentos.
O poema não é o homem nem a mulher
nomeando o que não tem nome
desabafando o que o tempo abafa
Muito menos o verbo possível de um deus impassível
Nem a música nem o sonho
Em que um cantor exausto se esquece e apaga
.
Não é uma terra de metáforas verdejantes
nem uma escrita de fogo plasmada do real.
Não sei dizer ainda o que ele é
pois está sempre mudando de rosto corpo alma e sexo
Apenas o pressinto: eis que se aproxima lentamente
e reconheço sua voz recolho o seu grito
penso suas chagas
.
As palavras que me traz são como pedras brancas
duras demais e a seu modo incomunicáveis
tudo que faço é tentar removê-las
o que não requer encanto ou dom divino
apenas braços desejo e paciência
para abrir uma clareira no silêncio
como uma pequena constelação contra o nada,
e esse breve intervalo na confusão no vazio no ódio
é o poema.

BRASÍLIA

Alguém sempre funda uma cidade do seu asco
ou de sua infelicidade, cercada de riscos,
erguida entre gestos de desafio a pedras tumulares.
O visitante não encontra palavras no concreto.
Puxa a mala repleta de livros,
cercado de prédios, tédios, catedrais de vidro
e se indaga como pode alguém ter sonhado tantos
presídios e depois povoá-los.
A cidade é um deserto e só carros
cabem no mapa que desenha um pássaro.
A vida se oculta periférica
Os habitantes dizem que são eles e não o poder
A razão daquela arquitetura imposta
Entre sendas de barro, ardor e frio.
Guardo de cada lugar não a memória
dos tijolos ou esgotos, mas impressões desencontradas
de um olhar viajante apressado
além daquele distanciamento
que me acompanha a cada paisagem pisada
seja ela a capital lunar ou uma terra devastada,
aqui como lá mal me lembro
de ser ou estar.

RETIRO

Por longo tempo estive doente de silêncios,
recoberto de cinzas, tácito como a madrugada,
melancólico como os mochos.
Aspirava à decantação de um espírito
devastador como nuvens de gafanhotos.
Não queria mais ver, não queria mais sentir
Qual era o meu lugar – o meu nicho e ninho – e me rendia
À desolação do deserto, ao desconsolo do tempo
E me fiz monótono, à imagem e semelhança do meu desespero.

Enterrei o desejo sob camadas de neutra indiferença
E já não era nada, menos que nada: palavras amargas
Repertório de farpas, sílabas envenenadas.
Por longos anos estive morto, pior que morto,
Seco e oco como um espantalho
E ignorei passos, gestos e vozes.
Desperdicei as horas o olhar: as palavras
Devoraram-se lentamente.
Era já um caso perdido, uma casa abandonada sob a hera.

Mas foi no centro neutro de um vazio tão completo
Que descobri o veio puro de que o ser era feito.
O tesouro aéreo as moedas solares o rosto luminoso
E amado da matéria vibrante. Reencontrei o fogo
A clareza esplendorosa de um regato ou de um rosto,
O rumor das cidades, o soluço ensimesmado das árvores
E o transparente silêncio das estrelas.
Fitei o meu segredo já aberto num sorriso distribuído
às sombras aos abismos aos abutres e corvos em fuga
E eu disse.

CADERNO

A voz foi e não foi liberta
Posto que adormece agora
entre as cordas flutuantes desta página de silêncio
Onde deixei desenhados os signos que não me traduzem
Apenas transplantam o mistério de uma face imperscrutável
e um coração arenoso a uma superfície porosa e perecível
Tanto quanto a carne o lábio o olhar o sexo e o desejo
Aqui reunidos neste feixe de inconstâncias
Que é quem eu sou. Deitada a mão pelo papel
Repleto de finas incrustações e lisas e azuis
letras lançadas trêmulas inebriantes erradias
Riscando cometas na alva cadência estendida
Como um deserto aberto sobre a mesa translúcida
E longilínea, aérea, erguida, a palavra
salta no universo enleada pelo olhar
sustentada pelo hálito
De fogo e vento que nos tempera
Distribui-se à órbita dos ouvintes
Alcançando longes e amanhãs, além das espirais
Que atam folhas pálidas à miséria do esquecimento.
As palavras alçadas
Assim à cor do dia vestem sentidos e se desnudam
Entregues em frases e versos intermitentes
na lembrança e na brevidade, esboçado o gesto de ser,
gravado no gelo breve de uma vida,
sob o nítido rumor de um pensamento infinito.

16.2.08


CAVALO

O dorso ardente prova o fogo dos prados
E o trigo das horas corridas ao sol

Na confusa fusão do olhar somos
um só mesmo animal na poeira dos rumos.

O galope intenso nos leva além
dos limiares de verde solidão e monotonia

A terra pouco a pouco
Abre paisagens segregadas a pés ou patas

Teu meu corpo feroz é só alento e pulsação
Nossas crinas solares dançam em desespero

Alcançamos a aurora da cidade fulgurante
fugitivos a correr desde a noite primeira.