22.6.07


VOZ

A pobreza da voz em tempos de escassez
nestes dias de gritos
ou de palavras atiradas a esmo ermas de sentido,
a voz despojada de tudo, até de si mesma, recolhida
ao poço da garganta negra
isolada fechada atenta
sem os papéis as funções os discursos utilitários
em que cada sílaba comercia com outras
em que as cifras salivadas
compram cigarros jornais convicções
enquanto o pensamento enamorado do silêncio
em nada confia a nada se entrega sem
previamente saber-se traído roubado perdido
pois dizer-se é sempre um erro uma subtração
ou um transbordamento
oh recolha-se a voz exausta à sua nudez
à mudez desvelada à sala calada ao dia desfeito.

Para que depois renasça a voz
em seus prazeres mais simples:
o bocejo o alento o segredo a rouquidão
o murmúrio a ironia a melodia
o palavrão o canto
antes dos contágios
antes dos clichês
antes do tirocínio

ante o poema.

14.6.07




SALÁRIO

Me sinto esvair
Pelas mãos
Resvalar
De miséria em miséria
dividido
entre a fome
a nudez
& a cobiça

Sinto-me dispersar
Sem divisas
esvair
pela terra
imiscuído
à promiscuidade
de negócios
câmbios & burlas

Sinto-me perdido
entre
ascos, cifras
e dívidas
já sem valor
torpe
vil
corrosivo

Quero ser
devolvido
aos segredos
dos cofres
ao
sossego
dos bolsos

Ou dormir
como um óbolo
inútil
sob
a língua
dos mortos.

11.6.07


Drummondiano - Os adeptos do kitsch em poesia se apossam da griffe Carlos Drummond de Andrade com uma displiscência que me assusta e enoja. A ignorância agressiva de sua obra lhe atribui sentimentalismos açucarados e banalidades inomináveis, mas a essência drummondiana a meu ver, é um humanismo pessimista, pleno de azedume, desconfiança e auto-ironia.

10.6.07


Pós-modernidade. A poesia atual, pós-moderna, é pura forma. Conteúdo zero, ou tão confuso que os sentidos se embolam e a nossa cabecinha nada registra. A culpa é de concretistas e pop-concretistas que encheram de sinais gráficos o papel, crendo que já não existiam mensagens a serem ditas em verso tradicional, rimado, branco ou livre. Há exceções a essa linha-dura formalista. O grande Nauro Machado, por exemplo, considera as Galáxias, de Haroldo de Campos, uma suprema bobagem. Um dos nossos melhores críticos de poesia, o ferino Mário Faustino, comprou inúmeros detratores enquanto insistia no uso do verso e na busca de uma dicção própria e inigualável, mas hoje, nestes tempos ágrafos e iletrados, é tachado de crítico 'bovarista' pelos nossos pós-poetas.

4.6.07


UM

Único
Como o vento
O país
O rio

Um só como uma pedra
No coração da terra
Uma escrita a sangue
Um grito

Um só Eu
pássaro poço esgoto
voz na madrugada
porto navio
rosto
Uma vida só
até
o último
sopro.

DOIS


Nós
Unidos por nós
Crescendo como círculos nas águas
Ou ramos tortuosos e seus frutos
Feitos para a fome e para o rubor
Entre braços selvagens e musicais
Pétreas e aéreas pernas
Ante claras divisas latejantes
Sobrevoando a solidão tentando arrefecê-la
Rir dela com pálidos dentes
Atando laços
e abraços.

Eu e tu
Amplamente espalhados
Expansivos irrefreáveis
Como espelhos rubros
Faces solares do amplo incêndio
Vértices da entrega arrebatados no ar
Como pontes e arcos noturnos
unindo astros terríveis
nossas línguas axilas mandíbulas
são fontes são nascentes
são evidências mordentes
de gestos e atos iniciais
que transcendem os horizontes de tédio
que separam casas e ruas
apartando os homens do seu desejo.
Tu e eu
entre nós
de sapatos
já de partida a rumos opostos da cidade
retomaremos vidas e hábitos
mas levamos conosco as simétricas
metades de um segredo audaz.

Proustiano. Ou o tempo emergindo de uma xícara de chá, um momento privilegiado em que um signo tomado ao arbítrio do acaso desencadeia toda uma série de sensações e recordações inter-relacionadas. A infância, o amor e o ciúme revisitados. A vida revisada a partir da visão de um espinheiro malva, do som de tlintlim de talheres e copos, um guardanapo roçado na boca, a capa de um antigo livro de George Sand ou a boca de uma carpa emergindo do fundo de um rio.

3.6.07


Kafkiano. Adjetivo recorrente à realidade contemporânea, brasileira ou internacional, pressupondo um universo hostil, próximo ao infernal, em que o horror vai acontecer, é quase tangível, como uma profecia acabrunhante que paira sobre o ser, bicho ou homem ameaçado de extinção. O pesadelo é realidade num mundo de opressão, e independe do sono como um estado da consciência intermediário. Kafkiano significa a negação de barreiras entre o cotidiano e a condenação.

2.6.07


ROSTO

O rosto é um mapa vertical
rija paisagem sem estrelas

Deserto sedento estendido
entre leques e travesseiros.

É um vale incerto e o
Exíguo país dos lábios

Quieto inquieto ambíguo
como um terreno baldio

Ou como um horto um jardim
florescendo risos e angústias

O rosto é uma enseada, um porto
uma ponte entre a dor e o nada

Uma nuvem no alto
da montanha ensimesmada.