30.4.06


Lição de Coisas - I

“Penso que Gauguin achava que o artista deveria buscar o símbolo, o mito, ampliar as coisas da vida até o mito,

Enquanto Van Gogh achava que é preciso deduzir o mito das coisas mais modestas da vida.

De minha parte, penso que tinha absoluta razão.”

(Antonin Artaud, um trecho de Van Gogh: O suicidado pela sociedade, 1947)




FACA


Escrevo na carne
as verdades incisivas.

Reparto o pão e o crime.
Arranco uma palavra vermelha
Da indiferença dos peixes.

A minha fala é cortante.
Meu sorriso fere.
Um gesto
E dilacero a pele das árvores.

Só estremeço em mãos covardes.

Venço a nudez ácida
de um fruto ardente,
declamo sementes
e me calo, aço sonolento.

O vozerio das pedras

afia o gume do meu silêncio.




OS ELEMENTOS REUNIDOS


Deita sobre a pedra áspera, na ríspida areia
sobre os seixos e o cascalho ferruginoso.
Durma sobre a terra escura e deixa
que o húmus te recubra
sob o verdor da relva.

Sonha
as águas profundas do mais negro poço
tua fonte secreta como lençóis inacessíveis
de esconso ouro líquido.

Aspira a tepidez do ar no baixio das colinas.
Da brisa, entre brumas de salitre, inala o mar distante
e o vento pútrido
que agita as copas dos mangues moribundos.
Aspira ao prazer de vôo pelo estro azul
flocado de nuvens como um amplo algodoal.

Ao anoitecer
melancólico acende uma fogueira.
Atiça o fogo
Atira teus tolos manuscritos.
Compara às estrelas reticentes estas pobres flamas
Deixa que o fogo engendre a tua alma
Ou que o teu corpo alimente as chamas.

29.4.06


ARANHA


O gesto de criar, de coser a partir do nada,
De tirar de si além do nojo a matéria delicada,
E esboçar no ar uma arquitetura transparente
Que prende uma gota de chuva ao sol poente
Faz a obra vibrar radiante entre ramos e folhas

Tensa cilada de vidro entre fibras de silêncio.

TRÊS OBJETOS INEXISTENTES



1. O GESTÔMETRO

Sente o calor das mãos
Mede o grau das carícias
Acusa o que se andou apalpando.


2. O POLICRISTO

Recipiente para lavagem de almas imundas
Já vem com o amaciante.


3. A MIRABÓLICA

Maravilha eletrônica de ponta
Canta as obras completas de qualquer poeta
Bastando a simples introdução de um dedo
Nos seus consoles íntimos.



CANÇÃO DA BELA ADORMECIDA

Não temas os sapos venenosos os espinhos as urtigas
Sob o halo espectral da lua não vives nem morres.

Deitada, as mãos dormentes, os pés dispersos:
Só o tempo se move, grita o vento, e tudo chove.

BURGUESES TRABALHANDO #1


Ele quer cavar o poema no fundo de si para expressar sentimentos dito profundos. Não pressente, porém, que seja um homem despudoradamente vazio. Quer escrever e não consegue. Olha pela janela, acompanha o rugir do trânsito pelas avenidas, estremece de tédio. É um sujeito tranqüilo, não faz mal a muitos. Vive bem, por assim dizer. Senta em almofadas confortáveis. Com fome, abre a geladeira. Com sede, bebe gim tônica.

Mas o papel em branco é a aflitiva prova de sua nudez. Denuncia com muda ironia as suas origens: insinua que ele pertence a uma longa linhagem de homens mesquinhos, silenciosos, inexpressivos. Mas está decidido a ultrapassar seus limites. Quer porque quer forçar o nascimento da voz. Seu mal é uma estante cheia de paradigmas.

Não ter o dom das palavras é nitidamente uma bênção, mas ele não sabe. Ilumina-se de ilusões. Fareja as verdades, mas rejeita-as bruscamente ofendido. Em desespero quase suicida atira-se sobre a indefesa folha de papel. Destrói a superfície serena dessa praia branca. E emerge do seu esforço trêmulo, exausto, alegre, com um poema deplorável nas mãos.



O OLHAR


O olhar liberto já não procura a luz
Busca apenas um sol negro que os ouvidos
Cegos associam ao reino das sombras.
Os olhos pretendem vasculhar o frio
E penetrar entre as trevas mais profundas.
A água do olhar abandonado à sorte
Degela-se à noite e inutiliza o inverno.
Não perde, porém, o desejo de sondar os céus
Para mergulhar mais fundo na morte.

28.4.06




CORTINAS


Recuamos como flores cegas
Incendiadas pela luz
na transparência da manhã.

Nossos rostos sem memória
Velam
Os últimos suspiros do azul.
Somos as testemunhas mortas
da palidez de um dia.

Existimos para o sigilo da penumbra
Ou para o bloqueio das paisagens.

Vencidas pela solidez do vento
Podamos os gestos das árvores
E avaliamos a espessura do silêncio.


LÂMPADA


O sol dorme dentro da laranja
A lua banha-se no urinol.

Mas o teu corpo incendeia o quarto.

E na densa órbita de tua claridade
Meus olhos circulam como os astros.

ÁRVORE


Cresço áspera como uma chama
enraizada no tempo.
Presa de uma pressa vegetal
Que desafia a paciência.

Não sou mortalmente desumana
como uma pedra ou um homem:

Frutifico silêncios
Para a voracidade da voz.

26.4.06


Conselhos a um jovem poeta

Um rapaz de 17 anos mostra-me os seus poemas e me pede a opinião. Não me mostro nada impressionado. Ele fica decepcionado e fala que vai parar de escrever. Bom, se parar só porque alguém não gostou, quer dizer que não escreve por convicção pessoal, e sim, talvez, para cantar suas milongas. Suas paixonites de rapaz. Poesia é outra coisa, digo para ele. Pergunto que poetas ele gosta de ler e ele me confessa que não lê nenhum, porque quer ser 100% puro, sem imitar nenhum outro. Quer ser "Adão de manhã cedo" como cantava Whitman, quer ser o primeiro poeta do mundo. Explico que um verdadeiro poeta não liga para os críticos, porque escrever, para ele, é uma necessidade vital. Se ele quer ser poeta deve ouvir sua voz - e não a minha. E comento ainda que todo poeta é um ladrão. Esse papo de permanecer 100% puro para mim é papo de adolescente com preguiça de ler. Poetas tem que ler tudo o que podem - e ainda mais! - poetas devem aprender a ler o que nem está escrito.

Hoje, 26 de abril, nos Estates, é o Dia do Silêncio. Uma invenção que colou entre os estudantes americanos - e que serve para protestar contra as discriminações de gênero. Aqui no Brasil podiam oficializar coisa semelhante, contra os preconceitos que levam muitos alunos a evasão escolar (Eu mesmo já vi uma sra. que se dizia educadora recomendar a um pai de aluno que espancasse o seu filho para que ele deixasse de ser efeminado). Educação, pois sim...

Mas também a idéia de um Dia de Silêncio me parece muito simpática por si mesma. Um dia sem blá-blá-blá, sem músicas vulgares, sem telefonemas nem parlapatices inúteis. Seria um dia de purificação e de repouso. Um dia de feriado para as palavras exaustas.

23.4.06


A cada dia fica impossível encontrar um livro que seja no labirinto que venho construindo aqui em casa. Outro dia, quis reler "O Bom Soldado", de Ford Madox Ford (Ed. 34, 458 págs, R$ 25,00) e nada de achar. Cheguei a pensar que tinha emprestado o livro ou sido roubado, o que dá no mesmo, já que as pessoas em geral têm a estranha mania de nunca devolverem os livros que emprestamos na maior boa vontade. Já havia repassado mentalmente a quem poderia ter emprestado, e o dedão já estava quase encomendando outro exemplar pelo site Submarino (somado ao frete, a brincadeira ia sair por uns 40 paus) quando me ocorreu procurar com mais calma. Fui e o danado estava lá quietinho, pegando pó, entre Rafael Alberti e Jane Austen. Ufa! Alívio, mas com sentimento de culpa. Tenho que organizar melhor a minha Torre de Babel.
Pensações

1. Detonar o governo Lula não tem muita graça. Afinal um presidente que não lê nada jamais vai suar frio, empalidecer e se indignar com o que dissermos dele nos jornais;

2. Sobreviventes em desespero lutam pela vida numa ilha infernal. Lost? Nada. São Luís.

3. No Brasil, a elite - ou mesmo aqueles que simplesmente tem o que comer todos os dias - andam como deuses luminosos entre pobres mortais.

14.4.06



COPO


Enlaço a cintura da transparência.
E um beijo úmido me abisma
Rente à margem de cristal.

Rendo os lábios
Ao recesso da onda,
Inundo o desejo
Cerceando a aridez
Que me transborda.

Uma fonte de vício ardente
Estancada pelo vidro
Quebra o viço da minha sede.