30.8.06


VERDE


Verdejo nesta manhã, árvore
sem frutos além das palavras
Mas o outono não me suborna.
De ramos precários intimido as aves.
Minhas raízes fincadas no deserto
Tentam haurir a água inexistente.

Eu verdejo de puro desespero.

29.8.06


Ouvidos para não ouvir

Um amigo me envia às três da madrugada uma mensagem de texto via celular perguntando quais são seus três maiores defeitos. Eu poderia responder mal humorado que ligar às três da madrugada para alguém já é um grave defeito, não sou do tipo que pega no sono rápido.

Respondo a meu amigo que o seu primeiro defeito é o de não ouvir nunca os outros. Ele é quase totalmente incapaz de ouvir, apesar de não ter deficiência auditiva alguma. Se alguém tenta lhe contar uma história, por exemplo, ele interrompe a pessoa no meio e começa a contar alguma outra coisa. Meu amigo age como se não soubesse que os outros têm algo mais que palavras por trás de suas vozes. Como se elas não gostassem de serem ouvidas para estabelecer um laço com o outro. A meu amigo só interessa a sua própria voz, os seus assuntos, a sua verdade pessoal e intransferível. Ele não quer permitir ao outro estreitar laços ou arriscar intimidades. Ao escutar a fala dos outros logo dá de ombros, desconversa e muda de assunto.

Grave problema a meu ver. Já que nega a possibilidade do diálogo. E dá uma impressão de indiferença por tudo que o outro possa querer relatar, comentar, discutir, afirmar, narrar ou questionar. Penso em algo que possa me anular mais do que silêncios impostos por amigos e mal consigo. Estamos empolgados contando um fato, uma história, uma anedota, o desdobrar de um acontecimento, um sonho, um crime, aí vem o nosso amigo e nos emudece porque ele é o único que quer fazer jorrar as palavras, e estas se sobrepõem às nossas, esmagam-nas, e nos vemos forçados a pôr humildemente as nossas palavras de lado, vencidas e recusadas.

O defeito do meu amigo pode ser traduzido como impaciência. Ele atalha o discurso alheio porque quer apressar a conversa, quer que se chegue urgente a um ponto de convergência que são suas próprias opiniões já estabelecidas, ele impõe sua fala porque não quer perder um único segundo pensando em algo fora da órbita de seus próprios pensamentos.

Além deste defeito lembro de ter enumerado dois outros também relevantes para meu amigo, e enviei a resposta rapidamente, digitando uma mensagem na penumbra do quarto. Até hoje ele cita essa minha pronta-resposta, que o fez pesar bastante cada um dos defeitos que lhe apontei. Não sei se consegui alertá-lo no meio da madrugada (ele trabalha de plantão) talvez só tenha aberto uma mínima fresta na grande muralha da China, mas talvez um dia o meu amigo saia da sua imensa solidão e consiga ouvir as muitas vozes do outro lado.

A Matéria dos Sonhos
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A partir de agora escreverei também sobre cinema no meu blog Filmes Sonhados. Dêem uma passada de vez em quando por lá e não esqueçam de divulgar, sugerir, comentar.

26.8.06


PASTILHAS DA ILHA


Uma voz no deserto é a de Frederico Machado, cineasta, agitador cultural, que tenta o milagre de mover as águas paradas e lodacentas da cultura maranhense no site Pastilhas Coloridas, com design e textos bem bacanas. Cercado de amigos jornalistas e outros colaboradores, a proposta é ir muito além das toadas de boi ou do oba-oba dos famigerados cadernos “alternativos” bundíferos de nossos jornais, que nada propõem de interessante, nos quais o espaço da cultura é todo ocupado por resumos de novelas, fuxicos de celebridades e horóscopos. A civilização acabou, como previu Ortega Y Gasset, em pop e besteira. Mas eis que surgem honrosas exceções à regra. Resta descobri-las. Que venham outras pastilhas como essa e que promovam uma verdadeira queda da bastilha na nossa falsa frança equinocial.

25.8.06



AZUL-CLARO


Neste dia
de praia
maresia
e sonho

Cardumes
de pescadores
mergulham
na orla
dos olhos.

Gaivotas
chocam
o sol.

A brisa
alucina
as cortinas.

O céu
mergulha

na piscina.

CAIXA DE LÁPIS


Dentro da quietude da caixa
As cores dormem isoladas
São doze lábios, doze vozes
Encastoadas em estoque.

Os dedos perdem o medo
Rompem a indolência dos gestos
E um arco-íris mergulha
Para fora do silêncio
Uma chama acende-se
na noite branca do papel
Augura-se a aurora
Os rios se desnudam
Os tons acordam sorrisos
O olhar retorna à alegria
sobre a superfície ardente
Liberadas as cores dormentes
Violados os segredos da caixa.

24.8.06


O PENÚLTIMO LEITOR


Alguns dos mais intensos prazeres da minha vida de leitor vieram das páginas iniciais de A Cartuxa de Parma, de Stendhal. Pouco há, em Literatura, que se iguale em impacto, ironia e poder de observação a essa narrativa frenética da batalha de Waterloo.

20.8.06


Duas tendências chatas da poesia contemporânea brasileira

Gostaria de citar duas tendências bem características na maior parte da produção poética atual e que acho bastante exemplares (no mau sentido):

1. A FRIVOLIDADE - Poesia como "um jogo de otário"; falta de consistência ou profundidade (às vezes disfarçada por experimentalismo lingüístico), tendência que virou mania depois dos anos 60, com seus concretismos, práxis, e etc. Estamos de volta aos tempos do poema-piada, e a maioria nem paga o tributo devido a Oswald.

2. A ERUDIÇÃO VAZIA - Que no fundo tem um ranço puramente acadêmico. O resultado são poemas repletos de alusões chiques, a Mallarmé, Valery, Apollinaire, etc que servem para mostrar como é culto e modernex o poeta.

ORA, VEJA...
.
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A revista Veja soa cada vez mais ridícula ao estimular o consumismo desenfreado das nossas classes médias. Sua matéria de capa desta semana fala da adesão de políticos (Lula como exemplo) e astros famosos aos milagres do Botox. Tudo é tratado muito superficialmente. Vê-se o assunto pelo ângulo da melhoria da imagem (algo de que candidatos às eleições e artistas populares dependem) ou do modismo crescente, mas não diagnosticam o narcisismo desesperado dessa gente, na busca incessante de um elixir da eterna juventude. Estes são tempos de infantilismo, em que todos queremos parecer (e agir) como adolescentes. Obviamente depois dessa matéria as clínicas estéticas que aplicam a famigerada toxina ficarão ainda mais cheias. O objetivo da revista era fazer uma denúncia? Como, se a matéria parece mais uma propaganda das vantagens do Botox que outra coisa...? Veja deve achar, cinicamente, que seus leitores médios têm cara (botocada e retocada) de gente frívola, que vive se espelhando em nossas elites fúteis, vaidosas e irresponsáveis.

19.8.06


O ACADÊMICO


Abre aspas
dita
palavras

.........fecha aspas
.........cita

.........autores
monografa
disserta
tesa
........leciona
........ensina
........opina
consulta
.....compara
............fuma
pucuspa
....unicampa
............ufma
......
.......relê
..........deslê
copia
corrige
colige

.........defende
.........ataca
.........acata
redige
dirige
reage
..........apresenta-se
..........aposenta-se
..........apaga
apaga apaga
o quadro
-verde.

18.8.06


VELA


O fogo que acendo
Desde que me entendo
O fogo que arvoro
E que me devora
O fogo que ostento
E que me rói lento
O fogo que destrói
Até o derretimento:
O fogo é minha voz.

17.8.06


OS ANJOS


De que são feitas
as plumas dos anjos?
: de flocos
as asas coladas

com ploc
os cabelos

com apliques
de ouro
a auréola
de araque

e arame
pendentes

no céu
por cabides
como móbiles
de Calder.


De que são feitas
as túnicas angélicas?
: de lã e de linho
de fibras de sonho

de fios de luz
De que tamanho
são os olhos
vermelhos
de que rosa
obscena
o ambíguo sexo.

De que sons são feitos
os cânticos
celestes
que sereias entoam
do alto
que encantos
escoam
dos lábios
que crueldades
amaldiçoam
terríveis.


Supomos
que eles
se agrupam
no ar

invisíveis
intangíveis
dançando
para nós
as plumas
ásperas
a espada
de fogo
as palavras
ardentes
.

Quem os viu
na alvura
das nuvens
quem os enfrentou
no deserto
quem os tentou
quem os filmou
no celular
quem beijou
seus calcanhares?

Sei que um caiu
entre nós
e se confundiu
e fez desta terra
um abismo
ígneo

Que sonhos
sonham
para nós
Que forjam
os anjos
quando dão
canja
por aí?

16.8.06


SHAKESPEARE


Evito discutir literatura em reuniões sociais. É chato, só exibidos o fazem, e para superelogiarem o Fernão Carpelo Gaivota de cabeceira. Não falo, mas, de ouvidos atentos, ouço aqui e ali as pérolas sobre o assunto. Gente bebendo se entrega a discussões intermináveis sobre celebridades, sobre filmes. Nem sei como, a conversa caiu no nome de Shakespeare. Melhor teria sido continuarem catando o lixo de Hollywood. Alguém confessa não gostar de Shakespeare porque “ele escrevia tragédias”. A omissão das pessoas, pretendendo abafar tudo aquilo que incomoda, que desafia, que angustia pensadores, me estarrece. A maioria de nós nunca saiu da caverna sombria, nem jamais alcançará a idade da razão.

Fala-se de Shakespeare como uma coisa ressequida e antiquada, que se tornou tradição. Nada mais humano que a ignorância. Romeu e Julieta, por exemplo, além da interdição a uma paixão entre dois adolescentes (tema em si banal), nos mostra como meros joguetes do acaso, arbitrariamente desgovernados, colidindo uns nos outros por atração sexual ou por rompantes de violência. Não há qualquer mecanismo regendo esse absurdo que é a existência. Enganamo-nos redondamente com a Razão, como o frei que decide ajudar Julieta. Só a morte revela-nos a verdade sem-sentido dos destinos humanos, perdidos entre grandes disputas vazias. É o que leva o pobre Mercutio a desejar “a peste sobre vossas duas casas”, praga fulminante que sempre vêm a meus lábios em anos eleitorais, quando se acirra a disputa entre governos e oposições. Shakespeare é imortal porque é nosso: mostra-nos o que há de mais humano em nós mesmos.

BREVE MANIFESTO


Não tomes por leves plumas
As penas de existir
Nem te reportes ao mundo
Com as ilusões por vir.

Cambia com a esperança
Por saber-te isento.

É preciso traficá-la
Através do mar cinzento.

Toma notas, atento.
Nota, por exemplo
dentre mil tormentos

o de viver.

BECO


Heras sufocavam os telhados
O ar de abandono das casas casava-se
Com a solidão e a feiura das ruas.
Os passos avançavam perdidos
.
De ruína em ruína o sol gravava-se
Como estampa nas peles.
Um discurso andarilho

anunciava o caminho
até o beco, à escada, o quarto
aos gestos que dispensaram

as palavras.

12.8.06

INFIDELIDADE

Imagino o chororô das viúvas de Fidel (radicais esquerdistas de classe média), e verto uma lágrima por Reinaldo Arenas, que em sua autobiografia Antes que Anoiteça punha os devidos pingos nos is sobre Cuba. Reinaldo, protorevolucionário desde a adolescência, foi perseguido e preso por ousar ser homossexual na Cuba castrista, mostrou sem disfarces o ranço da hipocrisia militante e o pesadelo de viver sob um tacão totalitário. Julian Schnabel (muito melhor cineasta que artista plástico) fez um filme sensível sobre a vida de Arenas, uma (rara) boa adaptação para um bom livro.
MIRISOLA


A moda de chorar seus caraminguás em literatura só ganha adeptos, e tem em Marcelo Mirisola seu maior representante. O cerne do que o escritor nos diz em Bangalô ou em O Azul do Filho Morto seria repulsivo apenas, caso Mirisola não cultivasse um estilo interessante (chupado em grande parte de Henry Miller). De resto, é de uma arrogância sem limites, e um tanto repetitivo.

CADEIRA


Entronizada
a um canto da sala
dorme sonâmbula
sabe o pó das horas
respira as sombras
repensa o silêncio.

Súbito estremece
sente o peso
da noite no colo

almofadado.

Esmagada
há longos anos
aguarda sentada

o dia do descanso.

11.8.06

TOSQUIANDO DAVID TOSCANA


Turista em Parati, o escritor mexicano David Toscana é festejado pelos comentadores culturais de plantão. Não entendo o porque de tanto confete. Li O último leitor, romance supostamente influen- ciado por Juan Rulfo, com leves alusões a Dom Quixote, e o negócio desceu mal, deixando um acre sabor na boca. Não que Toscana escreva tosco, o homem até junta as palavras direitinho. O problema é que seu livro é desumano, demasiado desumano. Beckett também era, vocês podem argumentar, mas o lirismo incomparável do irlandês compensava os horrores mostrados. David Toscana faz de seus leitores, dos primeiros aos últimos, seres moralmente mortos. Imita, claro, Pedro Páramo, de Rulfo, fonte literária inesgotável que já rendeu troços bem melhores.

10.8.06


TRÊS TEMPOS


1. Antes


Antes de nascerem as palavras se fundiram
Num rumor indefinível de inexatos contornos
Amalgamadas pelo desejo de soarem
Concentraram-se num enxame invisível
E ambicionaram uma rápida expansão pelos ares
Todas se confundiam no mesmo silêncio
Ávidas urgentes remordendo-se urdidas
Quase audíveis em sua vontade de voar
Enquanto dormiam úmidas no calor da boca.


2. Durante


As flores do jarro emudeceram
As quatro paredes se fizeram surdas
Os insetos quedaram incomunicáveis
Durante o escoar das palavras

A noite se esfumou em luz e pássaros
Os ossos esses esmaeceram
No corpo do silêncio morto



3. Depois


Que diremos,perguntaram as palavras
a si mesmas.nada, calemos agora
mas e depois estremeceram nervosas
na boca em silêncio o.que será de nós?

3.8.06


UMA DÚVIDA


Por que escrever? Ora porque por trás da aparência monolítica das coisas, há a sua essência. E para alcançá-la é preciso raspar a superfície com as unhas, raspar até chegar à alma secreta. Existir está encoberto para nós.