26.6.06


HOJE E ONTEM, ANA HATHERLY

Leio cada vez mais poetas portugueses modernos ou contemporâneos e acho vergonhoso que aqui no Brasil “deixemos os portugais à míngua”, ou seja, que leitores e editores de livros praticamente perpetuem a ignorância dos esplendores poéticos de uma Adília Lopes, de um Antonio Ramos Rosa, de uma Ana Hatherly. Quando muito o quarteto Camões-Eça-Pessoa-Saramago é lido e relançado. Portanto gostaria de falar da poetisa Ana Hatherly, que “descobri” quase acidentalmente, catando o que ler em uma livraria de shopping. Lançada em 2005 pela excelente Coleção Ponte Velha, da editora Escrituras, a coletânea A idade da escrita e outros poemas percorre alguns trechos do trajeto de Hatherly de 1959 até 2002. Para um neófito ávido por poesia (como eu) equivaleu a vislumbrar um regato de água fresca em pleno deserto. Seus poemas e textos em prosa poética abordam a temática amorosa sem clicherias, recamados que estão de despudorados experimentalismos barrocos. (Hatherly também é considerada abre-alas do Concretismo além-mar).

Sem mais-mais vamos a um fragmento de Ana: "A morte é um estado realmente sórdido/ por isso a cobrimos de toda fantasia/ inventando mitos de passagem./ Mas a morte é mesmo suja/ pornográfica/ expressionista/ com seus esgares/ odores/ desfazeres.// A arte é o travão que retarda/ a brutal presença da morte nos vivos."

Destaco também a relação profunda da poetisa com as artes plásticas. E reproduzo aqui um dos textos curtos do volume que me fez pensar na voragem do(s) nosso(s) tempo(s), em contrastes de perenidade e desintegração: "A consolação da escrita. Penso em Boécio escrevendo no limiar do desaparecimento mas acreditando na virtualidade dum real futuro. No meu século especulamos sobre a virtualidade do real de nenhum futuro. Destruction is fun dizia um menino ontem na TV falando dos seus videogames."

25.6.06



XADREZ

Preto e branco como o hábito das estrelas
De luzirem enquanto nos apagamos
Contra a carne opaca, ou vertemos
O vinho cor de sangue em silêncio
E vencemos a sede e guerreamos implacáveis
Desejo sobre desejo, ombro a ombro
Tomo-te as peças
A nudez estendida é um campo de batalha
No quarto anoitecido os lábios arremetem
Explodindo em delícia num arco de fulgor
As pernas tombam vencidas rendidas
As mãos inquietas tentam o vôo
O corpo saqueador avança ao limiar do fogo.
Teus dedos circundam as pedras
Tu, uma pedra de músculos e leveza

No meu arbitrário delírio.


PEÕES

Eles avançam na vanguarda do silêncio
São como nós nos arriscando nus
Corpos contra corpos.
Eles pisam as flores e os seixos,
Pequenos, mas intensos.
Vencem as madrugadas
e colhem a morte ou a aurora
no país da guerra.
Avançam,
armas guardadas nas almas
feridas abertas por palavras
Avançam na fronteira dos sentidos
E tombam à beira do suspiro
Extenuados estendidos
Mortos

De cansaço, mas vivos.


BISPO

Rezar no alvo altar de uma cintura
Consagrar os lábios à solar doçura
De um rosto alto acima das sombras
Lançar do peito uma revoada de pombas
Unir-se ao prodígio num afã urgente
De permanência no cimo mais celeste
Lançar os dilúvios e as rãs
Ler a verdade mais chã
Queimar sob a nave da transfiguração
Espalhar círios por dias e noites.
Arder em injunções sacrílegas
Despir o manto das tentações cegas
Vergar o corpo entre velas e novenas

Erguer a carne, plena de graças.
Perder-se na luz que seduz
Purificar os olhos escuros
Limpar os corpos dúbios nus.
Crer num deus puro

E renegá-lo em nome do corpo do desejo
e do orgasmo. Amém.



TORRE

Ardente torre
de sonhos músculos juventude.
Deito-me manso à tua sombra

Perco-me em tua órbita.

Templo ereto no tempo.
Tento penetrá-lo, mas como?

Tuas entradas são secretas
Teus construtores são discretos

Por que alçapões ou abertura
hei de viver a ventura

de profanar tua linda arquitetura?



CAVALO

Eu te domo como quem vence a morte,
Corcel negro escoiceando a esmo
Suspenso no teu dorso em furiosa levada
Sou jogado às estrelas, às nuvens e aos astros.
As paredes do quarto recuam e me perco
Num campo verde entre hálitos selvagens
E seivas urdidas por hastes frescas
Tu me derrubas e feres. Toco teus pêlos brilhantes
Alçamos um grito de êxtase que se perde pelas paredes
Brancas e desertas. Subo novamente em teus flancos
Galgamos na velocidade das inúteis palavras
Deixando rastros e rajadas de silêncio exausto
Atrás de nossos cascos.


REI

O rei negro e o rei branco

Enfrentam-se noite e dia

Passo a passo, sem tréguas
nem descanso. A guerra

Espalha-se cega pela terra
Os dois reinos se arruínam

Espadas se desembainham.
Silêncio. Um corpo tomba

Sobre o outro. Talvez vivam
Talvez morram. Indecisos,

O jogo perdura. Os reis duros
lutam no claro, amam no escuro

Um não fraqueja o outro não cansa
os reis são como duas crianças

Imbatíveis em eterna desavença
Dois colossos medindo forças

Homens tombam à sua volta
Mulheres lamentam sua sorte

O rei negro e o rei branco
Combatem até a morte.

Ou até a nudez. Dois amantes
num quarto jogando xadrez.


RAINHA

Perdida a majestade
A alma vaga sem tesouros
Já destronada e desolada e nua
Jaz sobre as areias do deserto
Onde os tigres, as pérolas, as pelúcias?
Sem damas de honra e sem carícias
O palácio lembra uma casa de vício
As palavras raivam insubmissas:

"O meu reinado é o nada."

23.6.06



LUA

densa,
flutua suspensa
sem gruas de sustentação
sem fios ou asas sem mãos

que a amparem no ar, crua
nádega sobre os telhados
nadando na amplidão.
Lua minha e tua
nua nua.


dança
no lago escuro
na noite na imensidão
trêmula clara espelhada
nas águas nos olhos na canção
brilha dupla agitada pulsante
baila ao vento em silêncio
pérola submersa
no imenso.
.


CARACOL


Uma cansativa trilha de prata
Brilha atrás da casa em fuga.
Como são lentos vossos jardins!
Arrasto na carne o sol e a chuva

Alastro na alma a solidão sem fim.

17.6.06



FÊNIX


Quando as portas da alma abrem-se
e música alta foge pelas janelas
e pelos olhos vegetam objetos,
coisas mortas deslembradas de ser,
enquanto cresce negra a grande noite
e em sombras se divisa um pálido
fulgor, rápido e fugaz, não um astro
no estro noturno, nem o brilho da íris
aberta contra a escuridão e o vazio,
mas uma flama que não se aplaca
na ventania que açula teus cabelos,
não é menos flama do que flor
o pássaro que se atira e atiça a luz
ardente, e pulveriza-se, expirante
em espirais de fumo e destruição,
e desses fins emerge como milagre
como sim e não, talvez cinzenta ave
ferida nas asas, mas renovada na
música não final, em secos ecos,
violência e pausas, cio e sexo, ovo
posto ao limiar do som e do silêncio.
Alcanço também o meu limite
nestes horizontes surdos, calados
e sem vôo, entre cinzas e palavras.

13.6.06



ADIÇÃO


Um mais um
É um beijo e mais outro
Duas bocas
Dois corpos
Não sei quantos desejos
Quantas camas
Quantos quartos
Um mais outro
São vários delírios
Medos Ciúmes grilos
Um mais um
São mais duas bocas
Dois pratos
Quatro patas
duas alianças
infinitas palavras
somadas
a um véu e uma grinalda
E mais insegurança
E mais fraldas
E mais e mais grana
E mais e mais cama
E mais e mais contas
mais dívidas
mais dúvidas
Um mais um
São duas vidas
Duas águas
Quatro olhos
Quatro pés
Um mais um
É demais.


MULTIPLICAÇÃO


Duas vezes brigamos
mil vezes perdoamos
umas vezes amamos

multiplicam-se os problemas
as dores de cabeça
os esquecimentos
as lágrimas
as mágoas
pelo número de falhas
de filhos
de responsabilidades
de remédios
de tédios
multiplicam-se aporrinhações
por números de registro
por senhas
com oito dígitos
contas bancárias
contra-cheques
cartões de crédito
e débito
multiplicam-se as horas
os dias os anos
pelos números de vales
pelos tickets e pelos males
e vícios
multiplicam-se os ratos
as baratas as traças
quantas vezes sem conta
tontas vezes sem volta
multiplicam-se os sonhos
os pesadelos medonhos
as insônias as insânias
o arroz com feijão
os cafés com leite
os omeletes os iogurtes
multiplicam-se os filhos
os vizinhos
os sobrinhos
os medos os segredos
os cigarros os pigarros
os elementos cancerígenos
os fios brancos
tudo isso multiplicado
no final por um zero
bem redondo.
Viver redunda
Em nunca.


SUBTRAÇÃO


Perdi tempo
E outras coisinhas preciosas
Emagreci
Encaneci
Debitaram minhas crenças
(perdi o bonde
E as esperanças)
Foram-se os anos os amigos
Os anéis os dedos
Foi-se a infância
a adolescência
virou obsolescência
eis-me agora agônico
anônimo
afônico anódino
sem coisas
nem loisas
se a poesia é um sinal de menos
provo o extremo
negativo
de cada poema.
Até que a vida
Esse detalhe ínfimo
Também se suma
resuma
a menos que.


DIVISÃO


Dividíamos tudo
Os sonhos, o futuro
Um prato de comida
a bebida a cama
Hoje nem o espaço.

São meus os discos os livros
A TV o PC os CDs os DVDs
as telas e as teias de aranha
São tuas as farsas as facas
As ilusões as raivas os laivos
Cada um com seus fantasmas
Seus visgos seus rasgos
seus arroubos suas paixões
seus palavrões e corações
partidos
São minhas as lembranças
As ânsias os exageros
O exaspero o atropelo
São teus os achismos e os achaques
Os ataques as gafes os gastos
Os fracassos as trapaças
São minhas as mentiras as verdades
As manias as fantasias
Cada um e a sua carga:

A metade do retrato
os versos rasgados, as camisas
amarrotadas, a porta aberta
o resto um dízimo
Um mínimo um fio
Um trapo um ato
precário e escasso
Um fragmento uma fração
O rosto cindido
Em cacos de espelho,
resíduos de sentimento
e lascas de orgulho.

Existo: um isto
Dividido por nada.

Viver resulta
da impossibilidade.

3.6.06



AFORISMOS


Cada homem é o seu próprio país
Cada corpo é sua própria catedral.

Todo abraço constrói uma ponte
Cada passo ultrapassa a morte

Os desejos germinam as árvores
Tua mágoa rumoreja as águas
Sexos são cães esfomeados

Um olhar sela o silêncio estarrecido
O coração é um continente perdido

Nossos gestos destroem as cidades
O meu e o teu orgulho já são guerra

Vidas brotam de ardores
Pensamentos emparedam labirintos
Toda criança é um pássaro caído


Cada homem é seu próprio enxame.


JANELA


Sente
o clarão na pele
o mar dos desejos
o mundo nos ombros

Rente
ao sonho
o dia inaugura
o verão nos olhos

Quente
paisagem acesa
luz que cega
e doura os corpos

Tente
vencer as grades
soltar os braços
saltar no ar

Frente
à noite
que veda o peito

e tranca tua voz.


CINZEIRO


As cinzas se conservam
No vidro das conversas.

Palavras se dissipam
Entre resíduos de sorriso

Falas comburadas
desabam dos lábios

Corpos inumados
Se acumulam na urna

Vestígios de vícios
Soçobram do incêndio

Restos de voz infestam
A festa do silêncio.


APOÉTICA

I

Não disputes títulos ou lauréis,
nem te arrojes aos pés quebrados
de velhos aedos incomparáveis,
não peças préstimos ou empréstimo
a deus diabo mestre anjo ou musa,
desconfia das palavras, recusa
ornatos e onanismos,
recua ante misticismos,
não ouças música não entres em transes,
não dances ao rumor de qualquer ritmo.

Prepara-te para um ricto diário,
um ato simples como o ler jornais
entrecortado pelos gestos firmes
da mão impura.

Repara: o veio
negro vertido na folha branca
estanca rapidamente, e seiva viva
já não circula pelo lenho indiferente
da mesa.

Acostuma-te a esta secura.

Olha medita mergulha no lago
plácido: sem ondas sem cristais
estilhados entre brumas.

Não penses, sob o rigor da canícula,
em menear um leques de plumas.
Reaprende a lição severa: sem plumas
um cão cata suas pulgas.

Canta antes uma pedra, um rio seco
um objeto sem cor.
No chão espojado busca
o áspero, o pó. Anda nu,
a pé, a sós, de sol a sol.
Sem nada, sem ecos
ou floreios, só assim
espera a avara
palavra.

II

Quanto ao ourives e seus
engastes de rubim,
que pretextava ouvir
estrelas em sua parola
de pérola oca,
nunca bebas destas águas
sabidamente impolutas,
esqueça os abismos altissonantes
mergulha no ar
sujo e estéril
das cinzas,
espreita as águas
de um negro poço:
espera, ouve, vê.
Uma queda
articula-se em silêncio e palavra:
uma pedra é contenção e sonidos.
Concentra teus círculos: tua sede
é fonte ela mesma.
Água a tua falta.
Flor o teu olhar
lançado sobre todas as coisas lentamente consideradas.

1.6.06

CRITICANDO OS CRÍTICOS


Sempre que leio Wilson Martins discordo de quase tudo que o grande homem de letras tem para dizer. Críticos são muitas vezes equivocados. Mesmo o mais arguto de todos eles, Samuel Johnson, cometeu seus deslizes. Dizer que “Tristram Shandy não durou”, por exemplo, foi um grande furo n’água, pois Laurence Sterne teve inúmeros imitadores de lá para cá: muitos deles latino-americanos. Machado de Assis é o nosso mais célebre exemplo.

Afirmar, como Wilson, que Guimarães Rosa é inimitável, portanto não deixa discípulos, me parece uma gafe. Wilson esquece que o verdadeiro escritor forte influencia outros. Se Rosa não teve sua própria cota de imitadores ou diluidores, então não me parece tão central assim. Não concordo com Wilson em número nem em grau. Penso que Guimarães Rosa tenha poucos rivais à altura em nossa língua – em matéria de ambição literária e alcance ele foi realmente incomparável, contudo, atravessar a vastidão de
Grande Sertão: Veredas sempre me pareceu penoso. Nonada. Larguei o livro várias vezes, reconhecendo, claro, o gênio da coisa toda; e até achando que talvez o esforço envidado valesse um biscoito no final. Só que nunca tive problema algum com Machado de Assis, cujos três grandes romances leio até o fim, com imenso e sempre renovado prazer.

Wilson Martins derrapa muito feio quando escreve também sobre Nélson Rodrigues ou Clarice Lispector. Mas, apesar dos seus muitos desacertos, às vezes comete boutades brilhantes. Um exemplo: quando ele afirma que João Cabral de Melo Neto foi o nosso maior poeta parnasiano. Bingo. Não podemos abrir mão de ler Wilson. Ainda que seja para discordarmos (e muito!) de suas eruditas linhas.

Por falar no assunto, será que ainda sai o Cânone da Crítica compilado por Harold Bloom? Meus críticos favoritos são o próprio Bloom, Johnson, Northrop Frye, Edmund Wilson, Walter Benjamin, os também escritores John Updike, Borges, Italo Calvino, entre outros notáveis, e no Brasil, Otto Maria Carpeaux e Paulo Francis.