27.1.07


GRITO
.
.
Não vivo só de mim
Apesar do exílio
no gesso dos gestos.

Atravesso a sala
ambulante sombra
entre escombros,
atos, ascos.

Os ombros rondam
pela casa inabitável.
O silêncio me açula:
desvio inquieto
dos terraços da morte
para o rio da noite

Nem sei quê
espessa o espelho
estremece os retratos
como um ódio ancestral
nos olhos alheios
que também são meus.

Guardo um rugido
na cela dos dentes.
um estalo de vidros
vibra em sonho.
Esmurro portas
surdas e mortas.

Primário rancor
sobrado
nos braços, nos ossos
nos restos
de dor selvagem
que doma o animal
que dorme na carne.

Despido de mitos
delírios ou delitos
Sou meu grito:

Hino inaugural
numa terra de nascença.



CAIXA-PRETA

A voz viaja
às palavras.

Estatela-se estrela cadente
ardendo nas pedras.

Dentro da caixa,
blindada,

Guardada

do desastre

A voz
aguarda.

23.1.07



O Quarteto de Alexandria - Lawrence Durrell

Finalmente, pela Ediouro, uma edição nacional do fabuloso Quarteto de Alexandria, a obra-prima de Lawrence Durrell. Cada volume tem um nome de personagem: Justine, Balthazar, Mountolive e Clea. A narrativa é modernista: fragmentada, descontínua, desagregada de qualquer cronologia, avança e recua livre no tempo, fundindo passado, presente e futuro. Pode-se dizer que a grande protagonista dos livros é a cidade que dá nome ao Quarteto, uma Alexandria cheia de personagens que vivem obcecados por sexo, todo tipo de sexo, embora nem seja isso o que mais se destaca no texto, e sim o clima de ironia, de sordidez, de desespero e uma gama de tudo isso junto. É um livro poderoso, por vezes terrível, de uma beleza cruel. (Não à toa: o título de "Justine" foi tirado do Marquês de Sade). Um breve trecho:

"Um camelo desabou de exaustão na rua. É pesado demais para ser levado ao matadouro. Dois homens aproximam-se empunhando um machado e ali mesmo, em plena rua, despedaçam o animal ainda vivo. Destrincham a carne branca - a pobre criatura parece cada vez mais sofrida, mais aristocrática e mais confusa quando decepam-lhe as pernas. Ao fim resta apenas a cabeça, ainda viva, com os olhos abertos, inquietos. Nenhum grito de protesto, sequer um esboço de resistência. Como uma tamareira, o animal se submete aos algozes. Nos dias seguintes, porém, a rua de terra fica encharcada com seu sangue e nossos pés descalços são marcados por essa mistura."