22.5.06



FIM

O limiar é um vazio
perfil sem palavras.

Os olhos calados
As mãos jungidas

A boca paralisada
Num último verso.


MEIO

No centro das palavras
Os rumores se concentram e se dispersam
Os sentidos nascem como ecos e dúvidas
Os gestos ordenam mistérios e claridades
As vozes plantam um diamante
noturno e solar
entre a língua e os dentes.

Palavras irrompem no meio do silêncio
E inauguram a praça dos lábios
E auguram as dúbias verdades
E misturam-se às aves canoras.

Depois do seu vôo ousado
as palavras usadas
mergulham exaustas
na ressequida esfera do olvido.

No meio das palavras
o deserto dos ouvidos
é invadido por mares de música,
uma praia nasce úmida
das várzeas ardentes e súbitas.
Deito nessa orla transparente
Rente ao quebrar das horas.
Estendo-me mudo e só
sobre o solo desnudo.

Sou uma ilha desolada.
Estou cercado de palavras

por todos os lábios.


COMEÇO

Iniciar onde tantos se findam
Pôr um pé no silêncio
Outro no vazio.

Estrear tardio:
Nascer decrépito. Frio
dos gestos e das palavras.

Início do fim,
Morte em vida:
Poesia recém-parida

Pelo ventre da agonia.

19.5.06



MULHERES

Para mim nunca foram esfinges no deserto
Ou damas inalcançáveis agitando leques.
Surgiam em formas maternas ou cálidas

e abriam sorrisos pré-nupciais aos namorados.
Costumava compará-las a rosas não-catalogadas
Quando o sol queimava-lhes a face, o perfume se esvaía
e escavadas as camadas da máscara de pó e rímel
ofereciam faces humanas, e pétalas qual miragem
alucinada revelavam cabelos de todas as cores
e eu surpreendia um sorriso, um olhar, um silêncio
dormindo ao relento do céu da boca encantada
por um tom de batom ou pelo dom da palavra.


HOMENS


Sempre vi meu pai como um silêncio
Ou uma sentença, um prato na cabeceira,
a carteira de motorista, um par de lentes grossas
e a desconfiança afiançando a fé dos céticos.
As mãos incansáveis amolavam uma faca
Ou esmagavam pragas gordas de sangue
E pareciam firmes como estrelas próximas.

Eu interrogava o seu rosto e não me reconhecia
Em mim mesmo, apesar da semelhança de traços
e do silêncio como herança primeira.
Não me reconhecia: a única identidade
Era o silêncio.

Precisei inventar uma voz
onde herdei perplexidade.

Hoje acho que meu pai e eu
somos espelhos
Refletimos diferenças

no mútuo olhar de espanto.

16.5.06




RAMO


Preferir o corte

A cair de podre.


RIO


Faz parte de meu destino quebrar os diques da terra
Sou como as águas correndo e revolvendo mundos
Trago estrelas e seixos afogados no peito obscuro
Devoram-se em mim cardumes de cores sonhadas
Arrasto no corpo as bagas podres dos lixos todos.
Correm, em meu sangue turvo, minérios e venenos
Bebem-me as línguas ávidas dos bois e borboletas.
Em meu curso caudaloso esborôo as pedras violentas
Moldo paisagens humanas, inundo campos de olvido
Minha voz subleva-se de espumas névoas véus d’ água.
Embriagado, espalho-me e contagio os córregos surdos
Sim, tenho pressa em romper as margens do silêncio

Como um rio fragoroso de rumores sem rumo.

12.5.06



PEDRA


Eu estava calma e concentrada sobre a terra
presa ao peso considerável do meu corpo.
Lentamente corriam as tardes e as noites
feitas de nada e de silêncio, frias como a morte.
Lagartos tranqüilos escalavam o meu dorso
formigas negras percorriam-me ávidas
Às lesmas fui uma ilha perdida ou uma casa.
Viva à margem da vida, inerte, compacta,
estendia uma sombra melancólica ao largo
do deserto eterno, aguardava congelada
a voz impossível, a água das palavras.

Dormindo para sempre eu jamais sonhava.

10.5.06

POESIA NEOBARROCA DA AMÉRICA LATINA


Jardim de Camaleões, lançado pela Iluminuras, é uma (ótima) coletânea de poetas ditos e tidos como neobarrocos. Os poemas compilados são todos bastante bons. O livro traz foto de cada um e traça breves perfis resumindo a bio/grafia dos poetas. Dentre tantos bardos destacam-se sobretudo os cubanos José Lezama Lima e Severo Sarduy, os argentinos Néstor Perlongher e Osvaldo Lamborghini; e os brasileiros Horácio Costa e Paulo Leminski. Há boas traduções, de Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes e Glauco Mattoso. Apesar de muitos dos autores citados já terem partido deste para outro jardim (talvez mais chão e menos de delícias) penso que o (neo)barroco ainda floresça por aí e inspire muitos camaleões.

O termo neobarroco, cada vez mais corrente, me parece um tanto “neo”. Até outro dia, cabeceando de sono ao cricri dos críticos, eu ouvia elogios à barroquice exuberante de Lezama Lima, no magnífico Paradiso, ou a Os Passos Perdidos, de Alejo Carpentier, outro monumento do barroco moderno. Agora os caras são neobarrocos. Sim, sei que uma rosa, ainda que mude o nome, continua uma rosa, dizia Keats. Mas sinto que perdi o momento sutil em que Narciso metamorfoseou-se em flor.



CINCO SENTIDOS


1

Eu vejo
...........a noite
......................negra
Eu vejo

...........a morte
......................chegar
Eu invejo
...........a sorte
......................cega.

2

Ouço
.........Vozes
Silêncios
.........Vida
Ouço
.........Passos
Pessoas
.........Pássaros
Ouço
.........Lágrimas
Soluços
.........Ossos.

3

Olor
.......de flores
Bolor
.......de pão
Odor
.......de tinta
Suor
.......da mão
Fedor
.......de sonho
Frescor
.......do dia
Humor
.......da terra
Vapor
.......d'água
Teor
.......de rosa
Flor
.......dos mortos.

4

Provar o que trava
.........a palavra
Provar o que amarga
.........a vida
Saber o ácido sabor
.........da língua
Sabor que envenena
.........o poema.

5

....Tateio pego toco
Manejo e meneio
Lápis papel pele

....Sinto aperto roço
Aproximo o rosto
Aqueço as mãos

....Gesto um verso
Verso os gestos
Escrevo escavo

....Estendo o braço
Corro os dedos
Colho a palavra.


LIXO


palavras abandonadas
livros destruídos
poemas amassados manuscritos
insensatos folhas réprobas
versos decrépitos
rimas resíduos restos
pensamentos
..................descartados
cartas levianas confissões rasgadas
cadernos obsoletos sonetos
sobras obras memórias

dedicatórias
estórias vis
escórias vãs
tesouro
revirado pelos cães.



8.5.06



CHINELOS


Atados
Como irmãos siameses

Emborcados
Como barcos virados

Empilhados
Como amantes amando

Calados
Como peixes num aquário

Velhos
Como cavalos estropiados

Nus
Como carneiros tosados

Lado a lado
Como casal de namorados

Verdes
Como frutos num horto

Inertes
Como os olhos de um morto

6.5.06




CRISÁLIDA



..no casulo..................me insulo
.....inseto......................incerto
...à espera..................à véspera
.....do dia.......................da ida
.....acesa.......................ascese
...à espera...................à espreita
....contida.....................contadas
...as horas...................as auroras
..os sonhos.....................o sono
.....cedo.........................a seda
.....cede.........................acesso
...à saída.......................da cela
.....suja..........................surjo
......as............................asas
...úmidas.......................súbitas
...abertas......................libertas
...prontas......................prestes
....à fuga.......................à fúria
dos ventos.................dos elementos
...da vida........................ávida
....breve........................e leve
....eu voo.......................eu vou

5.5.06



ÓRFICO


Trago-te comigo, o louvor
de erguer do sono, de um silêncio
arcano, de um torpor tecido em ontens
entre totens e teias ao orvalho
já livre do pó de tumbas
dos excrementos de columbas
da região de sombra aberta aos mitos
em mármores eretos ou demolidos
imune aos séculos de pátinas
guiando-te em sons e palavras
parcas, exíguas, sufocadas
que se não conspurcam
na púrpura, no limbo, no grito.

Trago-te comigo, e o tremer de sistros
e o fervor do Nilo no vigor de gordas searas
e o dom de enlear as pedras
por um abismo sem música.
Sobes comigo, degrau por degrau
Ouço teus passos tão leves, levitaste
metade do caminho. A aurora
já se insinua aos sonâmbulos,
um grão de pólen germina os meus olhos
uma primeira filigrana de ouro
peregrina do Saara, reluz nos teus.

Reacostuma-te agora às paisagens
e ao calor dos corpos, retomas
talvez os gestos habituais. Tua efígie
não se toma apenas por uma sombra
em breve ouvirei num murmúrio a voz
cheia de ternura ou ironia
com que me saudavas, tênue ainda
hesitante talvez, mas inesquecível.
Volto-me para comprovar o milagre
para ver se o impossível me persegue.
Identifico apenas um suspiro
todo meu, sina e agouro
de aedo sem chave de ouro
que abra as portas da morte
para tragá-lo, incontinenti.

Já me sinto estraçalhado

por mil bocas devoradoras.


DO EXÍLIO


tem palmeiras

onde

as aves

que gorjeiam

não gorjeiam.


céu

vida
nosso
nossa


prazer

onde canta


que não encontro

–sozinho
à noite–



não permita
que
morra


sem

sem
.

4.5.06



FÊNIX

A Luz, o fogo: o pássaro consumado
A flor, o fogo: o pássaro consumido

Esperança que não renasce, ave
extinta na sarça ardente, Fênix.

Eis a cinza de que somos feitos.
Esperei ver, em vão, o ressurrecto

pássaro de sangue revoar ao vento,
o dia reabriu e desfechou, isento

de milagre ou maravilha, desfez-se
à noite, pelos horizontes estreitos.

Dentro do peito, porém, a legenda
gravou seu signo, legou o grito, engen-

drou um canto, um encanto, um mito.

3.5.06


Poesia Reunida (1969 - 1996) – Orides Fontela

Grata surpresa do dia, e maravilhosa notícia, é o lançamento de Poesia Reunida (1969-1996) que engloba toda a magnífica obra da poetisa Orides Fontela (1940 – 1998), livro editado pela Cosac + Naify / Editora 7 Letras. Só quem já fuçou muito em sebos e livrarias sabe da dificuldade, ou mesmo, impossibilidade de encontrar os livros de Orides, poetisa da mesma geração de Nauro Machado, Mário Faustino e Carlos Nejar entre outros nomes luminosos da poesia brasileira da segunda metade do século XX.
Sua poesia refinada e reflexiva, metafísica e metalingüística, infelizmente era para poucos e raros leitores – eu só a descobri tardiamente, na biblioteca de um amigo, que me emprestou Trevo uma bela compilação de três livros dela lançada há alguns anos pela editora Duas Cidades. Tempos depois consegui achar o seu último livro, Teia, num sebo virtual e até ontem esse era o único dela que possuía. Um poema: Axiomas: Sempre é melhor/ saber/ que não saber// Sempre é melhor/sofrer/ que não sofrer// Sempre é melhor/ desfazer/ que tecer.
A personalidade difícil, arredia, de Orides Fontela, bem como a vida pobre, espartana, ajudaram a tornar a sua singular persona poética ainda mais famosa e discutida que a sua belíssima obra. Mas é essa lacuna que a Cosac/ 7 Letras pretende preencher, pondo os claros enigmas de Orides ao alcance das mãos, dos olhos e do coração do bom leitor.



GUARDA-CHUVA


Abro um cogumelo
contra a noite líquida

É um muro de seda
esmurrado pelas águas

Escapa dos meus dedos
E escala o vento

Acho que libertei um pássaro.


TAPETE


O rosto estendido
respira
o pó das solas.

O sonho pisado
encobre

o sangue das lajotas.

2.5.06




GRAFITE


Nos muros cobertos de hieróglifos indecifráveis
Deparo senhas secretas em dialetos selvagens.
Atento a estes signos ariscos, busco mensagens
Fragmentos que me trarão uma oculta verdade.
Tenho a mania de catar o insistente sentido inerente
A todas as tarefas mesmo as mais precárias.
Qual a vantagem da vontade de garatujar o branco,
Violentar a monotonia de cal das tardes neutras?
Alardear a presença na cidade dos indiferentes?

Os códigos cifrados pelas mãos dos filhos dos homens
Acabam por assinalar o tempo sujo nas ruas velhas
Pondo cicatrizes contra as fachadas, lojas, marquises
Cobertas de placas e néons e letreiros e siglas
ainda mais vagas e atordoantes que estes grifos
sem beleza ou brilho mas expostos em série
por galerias expostas ao sol e às intempéries.

Um poema não tem essa pressa de colar nomes
A mais no desbotado e opaco afresco do acaso
Mas nasce sujo e secreto no meio das madrugadas
De mãos que se aventuram no escuro e traçam
A todos e a ninguém, em negros arabescos,

as súbitas, as avulsas, as duvidosas palavras.

1.5.06




LANTERNA MÁGICA


Entro na sala
Encaro o vazio. Contemplo o grande nada
Começa um espetáculo de vidas inventadas.

...

À porta de saída contemplo outras ilusões.
Talvez mais sérias. Talvez mais banais
Frivolamente abandonadas
por duas horas ou mais.



GATO


Cicia
de manha
na manhã
que inicia

Altivo o porte elegante
Embora o bocejo de tédio
o dia jacente
entre almofadas

Os punhais das unhas
crispam-se guardados
aguardada a hora
dos ratos

Os saltos talhados
Para altos telhados.

Brilham
enormes pupilas
sóis negros
luas crescentes
contra escuros
muro beco noite.

Mudo
vigia
cada rumor,
Muda –
Escandaliza
- no amor.