29.10.06


CONTRADIÇÃO


Mas é disso que calo:
Simetrias sem igual
Enigmas impermeáveis
Ausências assepsias
Adornos perfeições
Hermetismos ecos
purezas torpes
Nas mãos lavadas.
Vestígios de nada
Entre palavras adestradas.

Mas é disso que falo:
A cidade nascente
Rente à fonte do sol,
Os corpos despidos
em meio ao desejo,
Os animais em fuga
Os objetos na mesa -
Pedra, prato, cristal
Sangue, sonho e rio:
As palavras em desafio.


GESTOS


Escalar as areias e as aldeias
Invadir os tempos e os templos
Demolir as escadas e as escalas
Penetrar as cidades e as saudades

Deitar nesta onda de sal e silêncio
Dormir na orla do mar invisível
Incendiar o sonho numa folha de papel

Conceber uma pedra ao relento
Acender uma fagulha uma ideia
Fundar um hospício um bordel
Experimentar a chuva colher limões

Sentir na carne o amor e o horror
Escrever versos nas águas
Reverter ao futuro prever o presente
Mergulhar no poço dos ossos

Despertar para as tempestades
Inaugurar os mitos rituais
Dar a vida pelo poema
Gritar no último verso.

28.10.06


ESPERA


Na praça quieta pombos inquietos
rondam os meus ombros
de estátua abandonada.


Nuvens circulam opacas.
O sol é um fruto seco
no céu dos olhos alheios.


O calor dos corpos:
O verão em plenitude.

Espero por toda tarde
Espero tua juventude.

Mas esperar-te arde.
O tempo reforça meu cansaço.
Envelheço na flor do instante.
O calor resseca o meu silêncio.

Esperar-te é uma ave
sem ramos para pousar.


É uma arte para poucos:
Paciente e transtornada.
Executo-a com precisão
Obstinada.

Espero-te
com desespero. Não virás:
avisam-me as buzinas impacientes. Mas
vens, entre transeuntes apressados.
Teu sorriso tranquilo
destoa do alvoroço.

O coração quase me pula do bolso.


MANHÃ


Ferida, a noite foge sem rastros.
Pássaros arrebatados crescem no ar musical.
As pedras despertam lentamente.
Os sonhos bocejam na boca da penumbra
Extintos todos os fogos, os olhos levantam-se.
Radiantes, iluminadas, vibram as palavras

No clarão do quarto nascente.

27.10.06

BALANÇO POLÍTICO


Véspera das eleições. Roseana Sarney é apoiada pelo Lulismo assistencialista. E quanto aos jovens maranhenses, apolíticos, de hoje, percebo apenas duas tendências claras: ou se entregarão ao consumismo, de produtos ou de tecnologias ou de religiões ou de práticas sexuais, ou se conformarão à perpétua marginalização, tragados pelo desemprego, pelas drogas, pelo álcool, pelas gangues, pela alienação, pela prostituição ou pela exploração subproletária. O Maranhão da mentira e da miséria, como escrevia o Padre Vieira, persistirá legitimado pelas urnas?

24.10.06




ESCULTURA


Queria estar viva
como uma árvore de compactas estrelas
não ser essa estátua decapitada
de terra fuligem e mais nada
queria cantar uma canção consternada
rir das pedras
com meus lábios duros de silêncio
e com gestos vermelhos de desespero
arrancar as mulheres dos sexos dos homens.
Queria destroçar a bela pose dos mortos
pensar e pesar o deserto
sem essa inércia concreta de anjo inútil
sem essas noites acumuladas
no sujo e pétreo coração.

22.10.06

SANGUE E ÁGUA

Estou completamente chapado com a leitura da obra-prima de Cormac McCarthy, Meridiano Sangrento. O livro descreve uma horrenda carnificina do passado americano: o massacre dos índios e dos aldeões mexicanos que viviam na fronteira do Texas com o México por um grupo paramilitar sanguinário. Mas, Meridiano Sangrento, apesar da violência repulsiva a que nos expõe, compensa como leitura por sua linguagem sublimemente elevada - que exibe um tom épico invejável e alcança uma dimensão mítica apocalíptica tão desconcertante que leva o grande crítico Harold Bloom a compará-lo com Moby Dick de Melville.

Melville, ao criar Ahab e a baleia branca, por sua vez, fez a melhor releitura existente em toda Literatura para o clássico Os Lusíadas, de Camões, um dos livros mais violentos já escritos, descrevendo a saga épica-mítica dos portugueses como uma viagem expansionista sem paralelos na História. Na visão de Melville, que leu Camões, a saga de perseguição a Moby Dick transformava-se numa busca visionária apocalíptica que simbolizava o destino dos EUA como nação. Nada me parece retratar melhor a ultraviolência, que constitui a essência da cultura, da expansão e da legitimação do poder americano que esse romance do século XIX. Cormac, como legítimo herdeiro de Melville e Faulkner, dá continuidade à linhagem de grandes escritores que discutem a violência americana, e o faz em termos negativos ou niilistas, mas não gratuitos, absolutamente impactantes, verdadeiros, atuais, e ainda por cima esteticamente compensadores.

Leio, com pesar e desconfiança, que Hollywood anuncia a adaptação cinematográfica de Meridiano Sangrento para 2007, dirigido por Ridley Scott, que já nos deu nos anos 80 o belo Blade Runner. O cineasta inglês Ridley Scott desde Gladiador vem se destacando ao filmar sagas históricas como adaptações épicas do império americano. A filmagem de Meridiano Sangrento virá então como o fecho de uma trilogia, que englobava Gladiador e Cruzada, filmes a meu ver, fracos. O que ponho em dúvida é se dá para filmar tantas atrocidades como as descritas por Cormac sem que a coisa pareça uma autoparódia sinistra. Meridiano Sangrento é tão absolutamente violento que uma adaptação cinematográfica fiel exigiria um Sam Peckinpah multiplicado por Quentin Tarantino elevado à enésima potência do Pasolini de Saló - os 120 dias de Sodoma, e o resultado final nas telas provocaria desmaios em qualquer platéia civilizada. A adaptação cinematográfica, lógico, deve aguar esse sangue todo. Arrisco o palpite de que não renderá boa coisa.