28.10.07

Pago-te com um piparote, fino leitor


Aqui na província seres singulares cursando Direito ainda brincam de tribunal para decidir se Capitu é culpada ou inocente de adultério. Iletrados querendo passar por leitores sempre chovem no molhado. Não precisam nem tocar na obra madura machadiana. Bastam os contos para verificar o ceticismo pessimista do autor em relação à humanidade. Não existem inocentes na obra de Machado de Assis. Ponto.

Obs 1: Dalton Trevisan já matou essa questão há muito, de resto enterrada por Paulo Francis. O último a jogar uma pá de cal foi Millôr Fernandes, que acha o Dom Casmurro uma pura bobagem.

Obs 2: A superficialidade impede que as pessoas percebam outras facetas mais dúbias da história, como o contraste social entre Capitu (pobre), vizinha de um Bentinho riquíssimo. Não me lembro de ninguém fazendo tribunal ou palestra sobre isso. O Brasil de Lula-lá não discute outra coisa senão o 'fosso social' entre as zelites e o povo.

25.10.07


LARANJA

Um grito
dourado
corta
a tarde.

O corpo
esfaqueado
ainda
arde.

Sementes
solares
feridas
de morte

caem
em silêncio
no vazio
dia.

MAÇÃ


A árvore arrancada
do fruto.

A serpente presente
à sobremesa.

A seiva venenosa
da saliva.

A crua nudez
das sementes.

A raiz da volúpia
sobre o prato.

O pecado
partido ao meio.


LENÇÓIS


Os corpos despidos que aí estirados
erram de mãos vadias ocupadas
entre pernas duras e palavras macias,
letal e lentamente arquejadas,
moldam uma caótica paisagem branca
de espasmo pano e plumas
sobre a cama devastada.

Os braços pesados nadam
imersos em ondas de torpor e brancura
vencido o amor, superados os impulsos,
rendidos à espessura do cansaço,
os lábios murmuram salivas
o algodão sorve a seiva aliviada
dos corpos sonoros cálidos caídos
entre taças de prazer e tecidos.

A claridade alveja os amantes
afogados à orla da aurora
entre cabelos e gestos desfeitos
no plano arbitrário das cobertas
que pouco a pouco recobram vida
crescendo ambos da noite para o dia
despertos, e já desertos um do outro:
corpos despojados entre lençóis nus
após o sexo o sono os sonhos
de plenitude e juventude.

A manhã ocupa descalços
pensamentos que se equilibram
sobre afazeres diáfanos como erguer
camisas do abandono e meias desmaiadas.
Corpos lavam resíduos, vestígios.
Desejos vestem-se, bocas despedem-se.
Mãos alisam, abotoam, atiram

lençóis, cambraias e sedas num baú
profundo e nu, sozinho no escuro.