28.12.06


UM BALANÇO

Fim de ano é um bom momento para um balanço pessoal. Há mais de ano escrevo um blog sobre literatura. Quixotesco, claro, pois literatura interessa a três ou quatro gatos pingados.
O grosso dos blogs: 1. Destila ironias; 2. Fala de cinema ou música; 3. Trata de trivialidades interessantes. Tudo muito divertido, mas que não solicita massa encefálica. Música e cinema são troços puramente sensoriais. Grande parte do cinema de hoje virou puro desenho animado, efeitos especiais em profusão sem uma boa história a amarrá-los, e as trivialidades do dia-a-dia são permeadas por bobagens de consumo rápido. Tudo parece amparado pela TV.
Ganhei um concurso e conseqüentemente lançaram um livro meu em 2006. Ler-se depois de algum tempo é um grande exercício de autocrítica. Jornalismo resume-se a press-releases de poderosos. Opinião livre e independente não conta nem consta mais da pauta. Escreve-se mal nos grandes jornais para alcançar uma malta de iletrados. Oscar Wilde estabeleceu a diferença entre o jornalismo e a literatura: o jornalismo é ilegível e a literatura ninguém quer ler.

Faço poesia, de vez em quando. E é o que me salva. Nem sempre me salvo na opinião geral.
Sei que ainda estou vivo.
No fundo não sei nada. Há anos não faço psicanálise. Ter amigos íntimos sai mais barato, já dizia um meu amigo. Sabemos bem o que não somos, e o que não queremos, como Montale. De resto estamos sempre reinventando a roda.

Sou um leitor de mente aberta, leio de tudo, de Homero aos pós-modernos, mas estou sempre voltando a um clube restrito de autores preferidos.
Arte para mim tem que ser arrebatadora. Prefiro livros a badalações, o que me encerra na concha. Romancistas notáveis dão-nos um mundo, um universo inteiro, vida – ainda que falem sobre o vazio e o tédio da vida. O charme é não ser vazio nem tedioso escrevendo.

Humor ajuda. A vida está cheia de ironias inspiradoras. Escritores sem humor descem muito mal, a meu ver. Seria um paradoxo ser sério num país que não é sério.
Não me vejo professor ensinando literatura numa academia. Literatura se ensina? A quem? Solidão não se ensina, embora parte essencial de nossa condição. A solidão é recriminada em nossa sociedade, que glorifica a imersão na massa e apregoa os sentimentos gregários. Escrever é a solidão posta no papel. Depende de isolamento e exige um grau de abstração próximo ao delirante. Não à toa Dom Quixote é o herói máximo da literatura romanesca, logo seguido por madame Bovary.

Beber atrapalha. Bebo, mesmo assim. Toda a minha geração bebe como cardumes no rio, raros escrevem. Devo ser um peixe muito esquisito no meio deles.

15.12.06


QUEDA
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Andando hoje pelas ruas do Centro ponho um pé numa falha da calçada e vou ao chão como um edifício em ruínas. Apanho meus livros caídos, bato o pó dos joelhos e retorno, humilhado pelos risos dos vigias de carro, ao mundo transtornado dos gestos. Um rapaz se aproxima e me pergunta se estou bem. Estou - respondo hesitante, trêmulo, ainda ferido - e é verdade: não quebrei os óculos nem nada interno, minha alma escapou ilesa. Mas uma sensação de impotência em relação aos acidentes, de fragilidade diante do acaso levanta-se comigo e me acompanha pelo resto do percurso.

19.11.06


PLACAS

Tantos signos
Trânsito
de estrelas
Fugas noturnas
Ruas solitárias
Palavras
Curvas
Pistas sinuosas

Tantas vozes
Vire
À direita
Pare
Proibido ultrapassar
Atenção
Siga:

Tantas vidas
Crianças
Animais selvagens
Obras
A 200m
Restaurante
A 100m
Hotel
Motel

Tantas vias
Desvio
Área interditada
Declive
Pista irregular
Lombada
Cuidado
Duplo sentido

Tantas palavras
Rotas tontas

Rotatórias.
Órbitas mortas
Obrigatórias
Vidas tortas
Paradas.

11.11.06

TEATRO

O homem comum gostaria de ser o autor de seu destino, mas no máximo é um ator dado a improvisos, muitas vezes um canastrão que participa com falas absolutamente banais, entrando e saindo de cena sem ser percebido; o homem comum é um mero figurante no contexto tragicômico da vida, nessa farsa atroz que é a história, da qual nem ele nem os demais atores conhecem previamente o enredo, as falas, a duração dos atos, o clímax, o desfecho.

Pequena reflexão sobre o amor e o silêncio

George Steiner, grande leitor de Kafka, diz-nos que não há nada mais seguramente destrutivo para um ser humano que o silêncio. Se considerarmos o silêncio em relação ao amor manifesto, por exemplo, nós o entenderemos como a negação desse amor. Aquilo que não tem expressão não existe para nós. Concordo, mas penso que exista um silêncio também que é pura timidez e uma timidez que atue como uma espécie de terror sagrado diante do objeto amoroso. O amor que não ousa dizer o seu nome e que soa tão contrário à palavra poética, permitam-me defendê-lo também. Quantas vezes ele não é mais intenso que o amor jurado em palavras dúbias, sedutoras, muitas vezes insinceras? A falação amorosa, a jura de amor, o desejo e a paixão declaradas são, a meu ver, a explicitação ou a reafirmação de algo que já foi e está sutilmente sugerido a cada gesto, a cada toque, a cada olhar (manifestações silenciosas do amor). Os poetas afirmam que sua poesia é seu sentimento, não nego isso, mas como Fernando Pessoa afirma, o poeta é um fingidor, sei que de fato poemas despertam emoções variadas nos que os lêem (da mais apaixonada à mais fria indiferença), mas um poema é, para seu autor, a despeito do alegado sentimento, acima de tudo, engenho, astúcia, jogo, sedução.
.
Um poema é menos expressão do amor que lábia de sedutor, pois o poeta é aquele que arma a teia de palavras com uma intenção disfarçada, ele tece uma rede invisível para capturar a presa, as palavras prendem, eis a contrapartida para o silêncio destrutivo, pois nada ata, enlaça, junta mais fimemente dois seres humanos que a linguagem. João Cabral de Melo Neto considerava os sentimentos vagos, informes demais para servirem como matéria poética, e sua poesia nascia de um silenciar os sentimentos, tornando claramente nítido o mundo que nos é apenas visível. Ele consegue ser ainda mais sensível abrindo mão dos alegados sentimentos de tantos maus poemas por aí. Oscar Wilde lembra-nos que toda má poesia é sincera.
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A situação do amor manifesto me parece ainda mais complicada na era do amor virtual, em que distâncias gigantescas separam os amantes, mas as palavras surgem instantâneas na tela, afirmando uma presença que não está ali. Kafka dizia que trocar cartas era um diálogo enganoso, pois nós "morreremos de sede", enquanto "as palavras serão bebidas no caminho por fantasmas". A instantaneidade da era da internet não me parece reduzir essa sensação de solidão, mas antes agravá-la. Somos impulsionados por uma sensação ilusória de simultaneidade através da internet, por meio dos programas de trocas de mensagens, mas na verdade dialogamos com fantasmas, cientes de que o desejo nasce de palavras e imagens, ainda que pareçam meros simulacros do encontro amoroso: novamente aqui é a rede, a astúcia o jogo que voltam a ser tecidos, empregados e jogados. mas me pergunto onde entram a timidez amorosa, o toque delicado das mãos ou um olhar cúmplice e poderoso, tão necessários ao amor, nesse reino feito de palavras emergentes e urgentes? Com que sutileza poderíamos expressar, via internet, orkut, msn ou e-mail, tudo aquilo que jamais expressaríamos usando as meras palavras?

10.11.06

Let Me Introduce Myself

Este aqui ao lado é o meu primeiro (e por enquanto único) livro publicado, Um passeio mítico pela obra de Clarice Lispector. Nele analiso três romances da autora (Perto do coração selvagem; Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres; A maçã no escuro) e também um conto (O Búfalo) de Laços de família. Longe de ver Clarice como uma esfinge sem mistérios, e passando ao largo do senso comum de que sua obra seja "ilegível" ou "confusa", discuto elementos formais (enredos, personagens), estéticos e míticos que compõem a base desses magníficos livros.

29.10.06


CONTRADIÇÃO


Mas é disso que calo:
Simetrias sem igual
Enigmas impermeáveis
Ausências assepsias
Adornos perfeições
Hermetismos ecos
purezas torpes
Nas mãos lavadas.
Vestígios de nada
Entre palavras adestradas.

Mas é disso que falo:
A cidade nascente
Rente à fonte do sol,
Os corpos despidos
em meio ao desejo,
Os animais em fuga
Os objetos na mesa -
Pedra, prato, cristal
Sangue, sonho e rio:
As palavras em desafio.


GESTOS


Escalar as areias e as aldeias
Invadir os tempos e os templos
Demolir as escadas e as escalas
Penetrar as cidades e as saudades

Deitar nesta onda de sal e silêncio
Dormir na orla do mar invisível
Incendiar o sonho numa folha de papel

Conceber uma pedra ao relento
Acender uma fagulha uma ideia
Fundar um hospício um bordel
Experimentar a chuva colher limões

Sentir na carne o amor e o horror
Escrever versos nas águas
Reverter ao futuro prever o presente
Mergulhar no poço dos ossos

Despertar para as tempestades
Inaugurar os mitos rituais
Dar a vida pelo poema
Gritar no último verso.

28.10.06


ESPERA


Na praça quieta pombos inquietos
rondam os meus ombros
de estátua abandonada.


Nuvens circulam opacas.
O sol é um fruto seco
no céu dos olhos alheios.


O calor dos corpos:
O verão em plenitude.

Espero por toda tarde
Espero tua juventude.

Mas esperar-te arde.
O tempo reforça meu cansaço.
Envelheço na flor do instante.
O calor resseca o meu silêncio.

Esperar-te é uma ave
sem ramos para pousar.


É uma arte para poucos:
Paciente e transtornada.
Executo-a com precisão
Obstinada.

Espero-te
com desespero. Não virás:
avisam-me as buzinas impacientes. Mas
vens, entre transeuntes apressados.
Teu sorriso tranquilo
destoa do alvoroço.

O coração quase me pula do bolso.


MANHÃ


Ferida, a noite foge sem rastros.
Pássaros arrebatados crescem no ar musical.
As pedras despertam lentamente.
Os sonhos bocejam na boca da penumbra
Extintos todos os fogos, os olhos levantam-se.
Radiantes, iluminadas, vibram as palavras

No clarão do quarto nascente.

27.10.06

BALANÇO POLÍTICO


Véspera das eleições. Roseana Sarney é apoiada pelo Lulismo assistencialista. E quanto aos jovens maranhenses, apolíticos, de hoje, percebo apenas duas tendências claras: ou se entregarão ao consumismo, de produtos ou de tecnologias ou de religiões ou de práticas sexuais, ou se conformarão à perpétua marginalização, tragados pelo desemprego, pelas drogas, pelo álcool, pelas gangues, pela alienação, pela prostituição ou pela exploração subproletária. O Maranhão da mentira e da miséria, como escrevia o Padre Vieira, persistirá legitimado pelas urnas?

24.10.06




ESCULTURA


Queria estar viva
como uma árvore de compactas estrelas
não ser essa estátua decapitada
de terra fuligem e mais nada
queria cantar uma canção consternada
rir das pedras
com meus lábios duros de silêncio
e com gestos vermelhos de desespero
arrancar as mulheres dos sexos dos homens.
Queria destroçar a bela pose dos mortos
pensar e pesar o deserto
sem essa inércia concreta de anjo inútil
sem essas noites acumuladas
no sujo e pétreo coração.

22.10.06

SANGUE E ÁGUA

Estou completamente chapado com a leitura da obra-prima de Cormac McCarthy, Meridiano Sangrento. O livro descreve uma horrenda carnificina do passado americano: o massacre dos índios e dos aldeões mexicanos que viviam na fronteira do Texas com o México por um grupo paramilitar sanguinário. Mas, Meridiano Sangrento, apesar da violência repulsiva a que nos expõe, compensa como leitura por sua linguagem sublimemente elevada - que exibe um tom épico invejável e alcança uma dimensão mítica apocalíptica tão desconcertante que leva o grande crítico Harold Bloom a compará-lo com Moby Dick de Melville.

Melville, ao criar Ahab e a baleia branca, por sua vez, fez a melhor releitura existente em toda Literatura para o clássico Os Lusíadas, de Camões, um dos livros mais violentos já escritos, descrevendo a saga épica-mítica dos portugueses como uma viagem expansionista sem paralelos na História. Na visão de Melville, que leu Camões, a saga de perseguição a Moby Dick transformava-se numa busca visionária apocalíptica que simbolizava o destino dos EUA como nação. Nada me parece retratar melhor a ultraviolência, que constitui a essência da cultura, da expansão e da legitimação do poder americano que esse romance do século XIX. Cormac, como legítimo herdeiro de Melville e Faulkner, dá continuidade à linhagem de grandes escritores que discutem a violência americana, e o faz em termos negativos ou niilistas, mas não gratuitos, absolutamente impactantes, verdadeiros, atuais, e ainda por cima esteticamente compensadores.

Leio, com pesar e desconfiança, que Hollywood anuncia a adaptação cinematográfica de Meridiano Sangrento para 2007, dirigido por Ridley Scott, que já nos deu nos anos 80 o belo Blade Runner. O cineasta inglês Ridley Scott desde Gladiador vem se destacando ao filmar sagas históricas como adaptações épicas do império americano. A filmagem de Meridiano Sangrento virá então como o fecho de uma trilogia, que englobava Gladiador e Cruzada, filmes a meu ver, fracos. O que ponho em dúvida é se dá para filmar tantas atrocidades como as descritas por Cormac sem que a coisa pareça uma autoparódia sinistra. Meridiano Sangrento é tão absolutamente violento que uma adaptação cinematográfica fiel exigiria um Sam Peckinpah multiplicado por Quentin Tarantino elevado à enésima potência do Pasolini de Saló - os 120 dias de Sodoma, e o resultado final nas telas provocaria desmaios em qualquer platéia civilizada. A adaptação cinematográfica, lógico, deve aguar esse sangue todo. Arrisco o palpite de que não renderá boa coisa.

13.9.06


GIZ


Desenho estrelas no céu vazio: a brancura do sol come os meus dedos: pó de palavras se acumula nos meus flancos: vozes se alastram entre olhares: pássaros chacinam a manhã: a ácida brancura do giz queima minhas mãos: devora meus braços e pensamentos: colore de tédio os meus cabelos.
.
Olho para trás: crianças anotam constelações nos mapas: cinzas de sonho nevam tranqüilas nas salas de aula: as mãos pequenas e morenas copiam as estrelas: ignoram a morte antiga dos homem dos sonhos dos desejos: são mãos macias olhos e bocas ávidas: crianças fardadas de esperança: janelas abertas para o futuro.
.
Mas eu escrevo hoje: e nada sei do futuro: sei apenas que as lições se esquecem: as estrelas queimam os nossos dedos: as palavras viram pó que nem os homens.

11.9.06


UFA!

Acabo de chegar de viagem. Estava em Brasília, e por lá pude visitar a Feira do Livro, uma loucura de gente, nos seus últimos dias. Descolei muita coisa boa em sebos, a preços de banana (quanto custa um cacho?). Em breve posto novos comentários aqui, e novos poemas também... é bom espanar logo a poeira e remover as teias senão perco todos os meus dois ou três leitores.

30.8.06


VERDE


Verdejo nesta manhã, árvore
sem frutos além das palavras
Mas o outono não me suborna.
De ramos precários intimido as aves.
Minhas raízes fincadas no deserto
Tentam haurir a água inexistente.

Eu verdejo de puro desespero.

29.8.06


Ouvidos para não ouvir

Um amigo me envia às três da madrugada uma mensagem de texto via celular perguntando quais são seus três maiores defeitos. Eu poderia responder mal humorado que ligar às três da madrugada para alguém já é um grave defeito, não sou do tipo que pega no sono rápido.

Respondo a meu amigo que o seu primeiro defeito é o de não ouvir nunca os outros. Ele é quase totalmente incapaz de ouvir, apesar de não ter deficiência auditiva alguma. Se alguém tenta lhe contar uma história, por exemplo, ele interrompe a pessoa no meio e começa a contar alguma outra coisa. Meu amigo age como se não soubesse que os outros têm algo mais que palavras por trás de suas vozes. Como se elas não gostassem de serem ouvidas para estabelecer um laço com o outro. A meu amigo só interessa a sua própria voz, os seus assuntos, a sua verdade pessoal e intransferível. Ele não quer permitir ao outro estreitar laços ou arriscar intimidades. Ao escutar a fala dos outros logo dá de ombros, desconversa e muda de assunto.

Grave problema a meu ver. Já que nega a possibilidade do diálogo. E dá uma impressão de indiferença por tudo que o outro possa querer relatar, comentar, discutir, afirmar, narrar ou questionar. Penso em algo que possa me anular mais do que silêncios impostos por amigos e mal consigo. Estamos empolgados contando um fato, uma história, uma anedota, o desdobrar de um acontecimento, um sonho, um crime, aí vem o nosso amigo e nos emudece porque ele é o único que quer fazer jorrar as palavras, e estas se sobrepõem às nossas, esmagam-nas, e nos vemos forçados a pôr humildemente as nossas palavras de lado, vencidas e recusadas.

O defeito do meu amigo pode ser traduzido como impaciência. Ele atalha o discurso alheio porque quer apressar a conversa, quer que se chegue urgente a um ponto de convergência que são suas próprias opiniões já estabelecidas, ele impõe sua fala porque não quer perder um único segundo pensando em algo fora da órbita de seus próprios pensamentos.

Além deste defeito lembro de ter enumerado dois outros também relevantes para meu amigo, e enviei a resposta rapidamente, digitando uma mensagem na penumbra do quarto. Até hoje ele cita essa minha pronta-resposta, que o fez pesar bastante cada um dos defeitos que lhe apontei. Não sei se consegui alertá-lo no meio da madrugada (ele trabalha de plantão) talvez só tenha aberto uma mínima fresta na grande muralha da China, mas talvez um dia o meu amigo saia da sua imensa solidão e consiga ouvir as muitas vozes do outro lado.

A Matéria dos Sonhos
.
A partir de agora escreverei também sobre cinema no meu blog Filmes Sonhados. Dêem uma passada de vez em quando por lá e não esqueçam de divulgar, sugerir, comentar.

26.8.06


PASTILHAS DA ILHA


Uma voz no deserto é a de Frederico Machado, cineasta, agitador cultural, que tenta o milagre de mover as águas paradas e lodacentas da cultura maranhense no site Pastilhas Coloridas, com design e textos bem bacanas. Cercado de amigos jornalistas e outros colaboradores, a proposta é ir muito além das toadas de boi ou do oba-oba dos famigerados cadernos “alternativos” bundíferos de nossos jornais, que nada propõem de interessante, nos quais o espaço da cultura é todo ocupado por resumos de novelas, fuxicos de celebridades e horóscopos. A civilização acabou, como previu Ortega Y Gasset, em pop e besteira. Mas eis que surgem honrosas exceções à regra. Resta descobri-las. Que venham outras pastilhas como essa e que promovam uma verdadeira queda da bastilha na nossa falsa frança equinocial.

25.8.06



AZUL-CLARO


Neste dia
de praia
maresia
e sonho

Cardumes
de pescadores
mergulham
na orla
dos olhos.

Gaivotas
chocam
o sol.

A brisa
alucina
as cortinas.

O céu
mergulha

na piscina.

CAIXA DE LÁPIS


Dentro da quietude da caixa
As cores dormem isoladas
São doze lábios, doze vozes
Encastoadas em estoque.

Os dedos perdem o medo
Rompem a indolência dos gestos
E um arco-íris mergulha
Para fora do silêncio
Uma chama acende-se
na noite branca do papel
Augura-se a aurora
Os rios se desnudam
Os tons acordam sorrisos
O olhar retorna à alegria
sobre a superfície ardente
Liberadas as cores dormentes
Violados os segredos da caixa.

24.8.06


O PENÚLTIMO LEITOR


Alguns dos mais intensos prazeres da minha vida de leitor vieram das páginas iniciais de A Cartuxa de Parma, de Stendhal. Pouco há, em Literatura, que se iguale em impacto, ironia e poder de observação a essa narrativa frenética da batalha de Waterloo.

20.8.06


Duas tendências chatas da poesia contemporânea brasileira

Gostaria de citar duas tendências bem características na maior parte da produção poética atual e que acho bastante exemplares (no mau sentido):

1. A FRIVOLIDADE - Poesia como "um jogo de otário"; falta de consistência ou profundidade (às vezes disfarçada por experimentalismo lingüístico), tendência que virou mania depois dos anos 60, com seus concretismos, práxis, e etc. Estamos de volta aos tempos do poema-piada, e a maioria nem paga o tributo devido a Oswald.

2. A ERUDIÇÃO VAZIA - Que no fundo tem um ranço puramente acadêmico. O resultado são poemas repletos de alusões chiques, a Mallarmé, Valery, Apollinaire, etc que servem para mostrar como é culto e modernex o poeta.

ORA, VEJA...
.
.
A revista Veja soa cada vez mais ridícula ao estimular o consumismo desenfreado das nossas classes médias. Sua matéria de capa desta semana fala da adesão de políticos (Lula como exemplo) e astros famosos aos milagres do Botox. Tudo é tratado muito superficialmente. Vê-se o assunto pelo ângulo da melhoria da imagem (algo de que candidatos às eleições e artistas populares dependem) ou do modismo crescente, mas não diagnosticam o narcisismo desesperado dessa gente, na busca incessante de um elixir da eterna juventude. Estes são tempos de infantilismo, em que todos queremos parecer (e agir) como adolescentes. Obviamente depois dessa matéria as clínicas estéticas que aplicam a famigerada toxina ficarão ainda mais cheias. O objetivo da revista era fazer uma denúncia? Como, se a matéria parece mais uma propaganda das vantagens do Botox que outra coisa...? Veja deve achar, cinicamente, que seus leitores médios têm cara (botocada e retocada) de gente frívola, que vive se espelhando em nossas elites fúteis, vaidosas e irresponsáveis.

19.8.06


O ACADÊMICO


Abre aspas
dita
palavras

.........fecha aspas
.........cita

.........autores
monografa
disserta
tesa
........leciona
........ensina
........opina
consulta
.....compara
............fuma
pucuspa
....unicampa
............ufma
......
.......relê
..........deslê
copia
corrige
colige

.........defende
.........ataca
.........acata
redige
dirige
reage
..........apresenta-se
..........aposenta-se
..........apaga
apaga apaga
o quadro
-verde.

18.8.06


VELA


O fogo que acendo
Desde que me entendo
O fogo que arvoro
E que me devora
O fogo que ostento
E que me rói lento
O fogo que destrói
Até o derretimento:
O fogo é minha voz.

17.8.06


OS ANJOS


De que são feitas
as plumas dos anjos?
: de flocos
as asas coladas

com ploc
os cabelos

com apliques
de ouro
a auréola
de araque

e arame
pendentes

no céu
por cabides
como móbiles
de Calder.


De que são feitas
as túnicas angélicas?
: de lã e de linho
de fibras de sonho

de fios de luz
De que tamanho
são os olhos
vermelhos
de que rosa
obscena
o ambíguo sexo.

De que sons são feitos
os cânticos
celestes
que sereias entoam
do alto
que encantos
escoam
dos lábios
que crueldades
amaldiçoam
terríveis.


Supomos
que eles
se agrupam
no ar

invisíveis
intangíveis
dançando
para nós
as plumas
ásperas
a espada
de fogo
as palavras
ardentes
.

Quem os viu
na alvura
das nuvens
quem os enfrentou
no deserto
quem os tentou
quem os filmou
no celular
quem beijou
seus calcanhares?

Sei que um caiu
entre nós
e se confundiu
e fez desta terra
um abismo
ígneo

Que sonhos
sonham
para nós
Que forjam
os anjos
quando dão
canja
por aí?

16.8.06


SHAKESPEARE


Evito discutir literatura em reuniões sociais. É chato, só exibidos o fazem, e para superelogiarem o Fernão Carpelo Gaivota de cabeceira. Não falo, mas, de ouvidos atentos, ouço aqui e ali as pérolas sobre o assunto. Gente bebendo se entrega a discussões intermináveis sobre celebridades, sobre filmes. Nem sei como, a conversa caiu no nome de Shakespeare. Melhor teria sido continuarem catando o lixo de Hollywood. Alguém confessa não gostar de Shakespeare porque “ele escrevia tragédias”. A omissão das pessoas, pretendendo abafar tudo aquilo que incomoda, que desafia, que angustia pensadores, me estarrece. A maioria de nós nunca saiu da caverna sombria, nem jamais alcançará a idade da razão.

Fala-se de Shakespeare como uma coisa ressequida e antiquada, que se tornou tradição. Nada mais humano que a ignorância. Romeu e Julieta, por exemplo, além da interdição a uma paixão entre dois adolescentes (tema em si banal), nos mostra como meros joguetes do acaso, arbitrariamente desgovernados, colidindo uns nos outros por atração sexual ou por rompantes de violência. Não há qualquer mecanismo regendo esse absurdo que é a existência. Enganamo-nos redondamente com a Razão, como o frei que decide ajudar Julieta. Só a morte revela-nos a verdade sem-sentido dos destinos humanos, perdidos entre grandes disputas vazias. É o que leva o pobre Mercutio a desejar “a peste sobre vossas duas casas”, praga fulminante que sempre vêm a meus lábios em anos eleitorais, quando se acirra a disputa entre governos e oposições. Shakespeare é imortal porque é nosso: mostra-nos o que há de mais humano em nós mesmos.

BREVE MANIFESTO


Não tomes por leves plumas
As penas de existir
Nem te reportes ao mundo
Com as ilusões por vir.

Cambia com a esperança
Por saber-te isento.

É preciso traficá-la
Através do mar cinzento.

Toma notas, atento.
Nota, por exemplo
dentre mil tormentos

o de viver.

BECO


Heras sufocavam os telhados
O ar de abandono das casas casava-se
Com a solidão e a feiura das ruas.
Os passos avançavam perdidos
.
De ruína em ruína o sol gravava-se
Como estampa nas peles.
Um discurso andarilho

anunciava o caminho
até o beco, à escada, o quarto
aos gestos que dispensaram

as palavras.

12.8.06

INFIDELIDADE

Imagino o chororô das viúvas de Fidel (radicais esquerdistas de classe média), e verto uma lágrima por Reinaldo Arenas, que em sua autobiografia Antes que Anoiteça punha os devidos pingos nos is sobre Cuba. Reinaldo, protorevolucionário desde a adolescência, foi perseguido e preso por ousar ser homossexual na Cuba castrista, mostrou sem disfarces o ranço da hipocrisia militante e o pesadelo de viver sob um tacão totalitário. Julian Schnabel (muito melhor cineasta que artista plástico) fez um filme sensível sobre a vida de Arenas, uma (rara) boa adaptação para um bom livro.
MIRISOLA


A moda de chorar seus caraminguás em literatura só ganha adeptos, e tem em Marcelo Mirisola seu maior representante. O cerne do que o escritor nos diz em Bangalô ou em O Azul do Filho Morto seria repulsivo apenas, caso Mirisola não cultivasse um estilo interessante (chupado em grande parte de Henry Miller). De resto, é de uma arrogância sem limites, e um tanto repetitivo.

CADEIRA


Entronizada
a um canto da sala
dorme sonâmbula
sabe o pó das horas
respira as sombras
repensa o silêncio.

Súbito estremece
sente o peso
da noite no colo

almofadado.

Esmagada
há longos anos
aguarda sentada

o dia do descanso.

11.8.06

TOSQUIANDO DAVID TOSCANA


Turista em Parati, o escritor mexicano David Toscana é festejado pelos comentadores culturais de plantão. Não entendo o porque de tanto confete. Li O último leitor, romance supostamente influen- ciado por Juan Rulfo, com leves alusões a Dom Quixote, e o negócio desceu mal, deixando um acre sabor na boca. Não que Toscana escreva tosco, o homem até junta as palavras direitinho. O problema é que seu livro é desumano, demasiado desumano. Beckett também era, vocês podem argumentar, mas o lirismo incomparável do irlandês compensava os horrores mostrados. David Toscana faz de seus leitores, dos primeiros aos últimos, seres moralmente mortos. Imita, claro, Pedro Páramo, de Rulfo, fonte literária inesgotável que já rendeu troços bem melhores.

10.8.06


TRÊS TEMPOS


1. Antes


Antes de nascerem as palavras se fundiram
Num rumor indefinível de inexatos contornos
Amalgamadas pelo desejo de soarem
Concentraram-se num enxame invisível
E ambicionaram uma rápida expansão pelos ares
Todas se confundiam no mesmo silêncio
Ávidas urgentes remordendo-se urdidas
Quase audíveis em sua vontade de voar
Enquanto dormiam úmidas no calor da boca.


2. Durante


As flores do jarro emudeceram
As quatro paredes se fizeram surdas
Os insetos quedaram incomunicáveis
Durante o escoar das palavras

A noite se esfumou em luz e pássaros
Os ossos esses esmaeceram
No corpo do silêncio morto



3. Depois


Que diremos,perguntaram as palavras
a si mesmas.nada, calemos agora
mas e depois estremeceram nervosas
na boca em silêncio o.que será de nós?

3.8.06


UMA DÚVIDA


Por que escrever? Ora porque por trás da aparência monolítica das coisas, há a sua essência. E para alcançá-la é preciso raspar a superfície com as unhas, raspar até chegar à alma secreta. Existir está encoberto para nós.

31.7.06



RENÚNCIA

Palavras encantadas nunca existiram.
Estão todas perdidas tão logo achadas.
A urgência da chama destrói os cristais
e a pura e única certeza é o silêncio
que se transfigura pela alquimia dos ecos
em rumores sutis, em ruídos e bulício
em falas trazidas da rua
pelos lábios confusos e remordidos.
Talvez a poesia seja a pintura do indizível.
E só quieta e abandonada, diga a que veio.

A TRISTEZA DO REI

...................>>>>>>>>>a João de Paula Aragão

Entrem urgente os músicos e os dançarinos.
...Soem as marimbas, toquem os sinos
Sirvam o vinho e o azeite à mesa do holocausto.
...Queimem o incenso em grande fausto.
Saltem alto, cantem, tentem ilusionismos
...Torçam-se em mil contorcionismos.
Encenem, bufos, as alegres mascaradas
...Montem farsas arranquem gargalhadas
Convidem as cortesãs mais doces e bonitas
...Nada de queixas, nada de desditas
Esqueçam por hoje intrigas e malícias
...Façam do salão um jardim de delícias
Brindemos, sonhemos, todos borrachos.
...Pois aí vem o Rei, ele vem cabisbaixo......

30.7.06


GÓRGONE


De rosto vil
e olhos
Arregalados
Caiu
degolada
Como
uma galinha
Entre as pedras

do jardim.


PONTE


Sobre o mangue
A lâmina flutua
E brilha iluminada
Como uma navalha
Cortando a baía
Em duas.


Comprida e concreta
Estira-se magra
Sobre as águas negras
Une duas margens
de lodo e miséria.

Uma (n)ave
Choca palafitas
Choças toscas
sob as patas
.

Rua flutuante
De aço, engenho
E sonho

Que transponho
Vida adentro.

27.7.06


MIDAS

Tudo o que toco transforma-se em elegia.
...As odes, os estrambotes, os acordes, as alegrias
destroem-se a um simples toque, na carícia
...que a mão não sofre, na delícia que a alma
não sente. Os frutos perdem a cor, o sabor
...e quebram-se os dentes, e o vinho seca-se
em pó nos lábios. É falso o esplendor
...das palmas decadentes e do ouro semeado
a ninguém. Nem os deuses nem as gentes
...querem visitar estes pilares amarelados
erigidos por mãos culpadas e doentias.
...Sou um rei fadado à fome e à tirania.
O povo me teme a lepra e desvia-se.
...Tudo que me toca transformo em poesia.

EVOCAÇÃO

.................a Nauro Machado

Dize
que palavra redime
o homem, qual o define
verdadeiro em seu rastro
que se apaga no pó
revela-me o dom
que abre sendas
mostra-me, muito
além do deserto
as fontes.

Traze
o som e o ardor
o penhor e a senha
franqueia-me o delírio
em que leste os signos
decifra-me os códigos
e os cegos desígnios
antes que o vazio
cubra de silêncio

o vazio.

MINICONTOS

I

Ele nunca falava sobre si mesmo. Nada. Nem uma palavra. Eu pedia, implorava: Fala, fala alguma coisa. E ele em silêncio brutal. Um dia, bebendo, a inesperada confissão: a mãe prostituta, o pai assassino de aluguel. E eu ali, calada, sem saber o que dizer.

II

Um dia o sonho com Cristo. O homem mais lindo do mundo. Atirada aos pés dele, chora, chora. Ele lhe acaricia os cabelos e diz: Vai. E não peques mais. Nunca se sentiu tão pura, tão imaculada.
- E daí?
- Daí eu aqui, toda mergulhada em pecado novamente...!

III

Dois pivetes. Um que pede:
- Tio, um trocado?
- Não tenho não.
O outro nem conversa:
- É chegar e meter o bicho.

INCENSANDO A CRÍTICA


Saiu o terceiro volume da série As Obras Primas Que Poucos Leram, da Record, que compila, sob a organização da jornalista Heloiza Seixas, vários textos críticos publicados na extinta revista Manchete. Este volume da coleção reúne ensaios sobre poesia e teatro de Otto Maria Carpeaux e Paulo Mendes Campos, entre outros, que analisam "Os Lusíadas", de Camões, "Fausto", de Goethe, "A Divina Comédia,", de Dante, "Paraíso Perdido", de Milton, "A Terra Desolada", de T. S. Eliot, "Uma Estação No Inferno", de Rimbauld, "As Flores do Mal", de Baudelaire, "Folhas de Relva", de Whitman, e vários poemas e peças fundamentais. A coleção inteira (Os dois primeiros volumes tratavam sobre grandes romances) merece um lugar na estante. Só os ensaios de Carpeaux sobre Shakespeare e de Paulo Mendes Campos sobre a "Poesia-Coisa", de Rilke já valem pela maravilhosa iniciativa de lançar estes livros. Particularmente sempre considerei o melhor da poesia de Rilke esses poemas objetivos, (que já foram traduzidos brilhantemente pelos irmãos Campos) a despeito da aura metafísica do poeta nas Elegias de Duíno e nos Sonetos a Orfeu. O único senão são os ensaios chatíssimos, acadêmicos, de Josué Montello. De resto, um livro indispensável.

24.7.06

RELENDO BORGES


Os escritores contemporâneos são todos tardios. Chegaram atrasados: perderam a última festa, que foi o Modernismo, um verdadeiro e grandioso banquete, como registra o eminente Roger Shattuck. O Humanismo há muito descansa em paz, enterrado como aquela senhora da peça de Beckett, que ia sendo gradativamente tragada pela areia. Esse sentimento de chegar tarde sempre acompanhou Borges, cujas obras tentavam compensar o seu atraso literário despejando no leitor um oceano de erudição. Borges vivia para os livros e para a mãe, com quem morou até a morte dela e só esboçou vida amorosa na velhice, com sua secretária Maria Kodama, mocra tal que só um cego mesmo. Em suas últimas entrevistas, Borges deu vazão ao mais puro ressentimento. Ser tardio o tornava uma figura deslocada no tempo e no espaço, uma fantasmagoria quase tão imponente e improvável quanto o falecido pai de Hamlet assombrando o reino da Dinamarca. Argentino, queria ser e foi enterrado na Suíça, país curioso, que, na sua frase famosa, foi o único a optar pela Racionalismo. Hoje sabemos que os bancos suíços embolsaram dinheiro nazista, pilhado de judeus mortos na Segunda Guerra. E o tal Racionalismo acabou posto em cheque pelas teorias do inconsciente de Freud, o velho pai da psicanálise, que por sinal Borges desprezava.

Borges foi o anti-Proust por excelência. Jamais escreveu um romance e tinha horror a tramas “psicológicas”, informes a seu ver. Emulava Kafka e admirava Mallarmé, e como ambos, parece que preferia literatura a tudo, sexo inclusive. Foi contemporâneo de Neruda, que na época ocupava o cargo (político) de maior poeta latino-americano da terra. Borges, que era um bom poeta, jamais alcançou a notoriedade de Neruda nesse terreno, apesar de se opor a Perón (que odiava), ele acabou famoso pelos contos em estilo de ensaísta e pelos ensaios, verdadeiros contos. Num de seus melhores, O Aleph, Borges reserva gozações impagáveis a Neruda e faz pouco da obra máxima do rival, o longo Canto General. Contudo, a despeito do pouco-caso de Borges, Neruda legou muitas influências. Elisabeth Bishop, a poetisa norte-americana, confessou que detestava Neruda, mas se dizia contagiada pelo surrealismo de seus poemas.

O grande crítico Harold Bloom diz que seu conto favorito de Borges é o policialesco “A Morte e a Bússola”. Mas o que eu mais admiro chama-se “As Ruínas Circulares”. Um primor narrativo, estético e metalinguístico. Sempre que o releio, sinto o mesmo impacto da primeira vez e acabo gratificado pelos intensos prazeres que proporciona.

23.7.06


AMIGOS OCULTOS


Tenho amigos que se ocultam
na sombra na poeira no sul no norte
no olvido na solidão no mar
ou sob uma máscara
de sal e silêncio.

Suas vozes desertam os nomes fogem
no entanto rostos às vezes volvem
como um segredo antigo uma lua nova
Nos dias noturnos em que os revejo
reabertos os sorrisos cheios de silêncio
e mal reconheço as palavras apressadas
que me saúdam ou indagam as novidades.
Sei que suas vidas correm e se derramam
fugidias como arcos de cristal
ao acaso da tempestade ou se revelam
Intrincadas como os veios de sangue do tempo.

Revejo os amigos ocultos num gesto numa foto
Numa cadeira num copo na palavra franqueada
Que tenta conversar comigo e reabilitar o riso.
Temos o pacto de um abraço
intacto ainda que milhões de paredes
nos separem e cubra-nos o tédio oficial
de viver entre prédios cinzentos
em destinos alheios a todas as alianças sutis
como as dos grãos de areia com as gotas d’água.

Os amigos ocultos caminham na transparência
da pura ausência. Mas sei que os tive
por um instante por um segundo
antes que se dissolvessem no ar
enquanto cavavam seus lugares no mundo.

20.7.06


GARRAFA


Guardo no sigilo do sangue
Uma senha de sonho e espuma

Trago comigo uma tempestade
No fundo da calmaria escura

Acumulo segredos pouco nítidos
Sob a transparência do vidro

As mãos que violam meu silêncio
Vertem um canto entorpecido

Distribuo as palavras livres
Derramo as verdades vedadas

Proponho o delírio num brinde

E abafo o rumor das mágoas.

LIMIAR

Alcançaste a árida terra das sombras
E me comunicas a noite pontualmente
Junto aos grilos sob a fronteira de estrelas.

Eu te procuro na terra como quem cava
Em busca do fogo das palavras
E faz jorrar um puro lamento.

Tua voz foi lavada pelas chuvas
Teu sorriso jaz coberto de musgo

Tu és um cristal entre as pedras:
A essência mineral do silêncio.

26.6.06


HOJE E ONTEM, ANA HATHERLY

Leio cada vez mais poetas portugueses modernos ou contemporâneos e acho vergonhoso que aqui no Brasil “deixemos os portugais à míngua”, ou seja, que leitores e editores de livros praticamente perpetuem a ignorância dos esplendores poéticos de uma Adília Lopes, de um Antonio Ramos Rosa, de uma Ana Hatherly. Quando muito o quarteto Camões-Eça-Pessoa-Saramago é lido e relançado. Portanto gostaria de falar da poetisa Ana Hatherly, que “descobri” quase acidentalmente, catando o que ler em uma livraria de shopping. Lançada em 2005 pela excelente Coleção Ponte Velha, da editora Escrituras, a coletânea A idade da escrita e outros poemas percorre alguns trechos do trajeto de Hatherly de 1959 até 2002. Para um neófito ávido por poesia (como eu) equivaleu a vislumbrar um regato de água fresca em pleno deserto. Seus poemas e textos em prosa poética abordam a temática amorosa sem clicherias, recamados que estão de despudorados experimentalismos barrocos. (Hatherly também é considerada abre-alas do Concretismo além-mar).

Sem mais-mais vamos a um fragmento de Ana: "A morte é um estado realmente sórdido/ por isso a cobrimos de toda fantasia/ inventando mitos de passagem./ Mas a morte é mesmo suja/ pornográfica/ expressionista/ com seus esgares/ odores/ desfazeres.// A arte é o travão que retarda/ a brutal presença da morte nos vivos."

Destaco também a relação profunda da poetisa com as artes plásticas. E reproduzo aqui um dos textos curtos do volume que me fez pensar na voragem do(s) nosso(s) tempo(s), em contrastes de perenidade e desintegração: "A consolação da escrita. Penso em Boécio escrevendo no limiar do desaparecimento mas acreditando na virtualidade dum real futuro. No meu século especulamos sobre a virtualidade do real de nenhum futuro. Destruction is fun dizia um menino ontem na TV falando dos seus videogames."

25.6.06



XADREZ

Preto e branco como o hábito das estrelas
De luzirem enquanto nos apagamos
Contra a carne opaca, ou vertemos
O vinho cor de sangue em silêncio
E vencemos a sede e guerreamos implacáveis
Desejo sobre desejo, ombro a ombro
Tomo-te as peças
A nudez estendida é um campo de batalha
No quarto anoitecido os lábios arremetem
Explodindo em delícia num arco de fulgor
As pernas tombam vencidas rendidas
As mãos inquietas tentam o vôo
O corpo saqueador avança ao limiar do fogo.
Teus dedos circundam as pedras
Tu, uma pedra de músculos e leveza

No meu arbitrário delírio.


PEÕES

Eles avançam na vanguarda do silêncio
São como nós nos arriscando nus
Corpos contra corpos.
Eles pisam as flores e os seixos,
Pequenos, mas intensos.
Vencem as madrugadas
e colhem a morte ou a aurora
no país da guerra.
Avançam,
armas guardadas nas almas
feridas abertas por palavras
Avançam na fronteira dos sentidos
E tombam à beira do suspiro
Extenuados estendidos
Mortos

De cansaço, mas vivos.


BISPO

Rezar no alvo altar de uma cintura
Consagrar os lábios à solar doçura
De um rosto alto acima das sombras
Lançar do peito uma revoada de pombas
Unir-se ao prodígio num afã urgente
De permanência no cimo mais celeste
Lançar os dilúvios e as rãs
Ler a verdade mais chã
Queimar sob a nave da transfiguração
Espalhar círios por dias e noites.
Arder em injunções sacrílegas
Despir o manto das tentações cegas
Vergar o corpo entre velas e novenas

Erguer a carne, plena de graças.
Perder-se na luz que seduz
Purificar os olhos escuros
Limpar os corpos dúbios nus.
Crer num deus puro

E renegá-lo em nome do corpo do desejo
e do orgasmo. Amém.



TORRE

Ardente torre
de sonhos músculos juventude.
Deito-me manso à tua sombra

Perco-me em tua órbita.

Templo ereto no tempo.
Tento penetrá-lo, mas como?

Tuas entradas são secretas
Teus construtores são discretos

Por que alçapões ou abertura
hei de viver a ventura

de profanar tua linda arquitetura?



CAVALO

Eu te domo como quem vence a morte,
Corcel negro escoiceando a esmo
Suspenso no teu dorso em furiosa levada
Sou jogado às estrelas, às nuvens e aos astros.
As paredes do quarto recuam e me perco
Num campo verde entre hálitos selvagens
E seivas urdidas por hastes frescas
Tu me derrubas e feres. Toco teus pêlos brilhantes
Alçamos um grito de êxtase que se perde pelas paredes
Brancas e desertas. Subo novamente em teus flancos
Galgamos na velocidade das inúteis palavras
Deixando rastros e rajadas de silêncio exausto
Atrás de nossos cascos.